quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A omissão e a condenação à prática do acto devido

A condenação à prática do acto devido é um pedido da acção administrativa especial (arts. 46º do Código do Processo Administrativo) que se encontra regulado nos artigos 66º e ss. Podemos afirmar que constitui um exemplo da mudança de lógica do Contencioso Administrativo. Tendo sido introduzido com a reforma do modelo constitucional de contecioso administrativo resultante da revisão constitucional de 1997 e baseado na tradição alemã do "Vornahmeklage" das "acções para cumprimento de um dever" , foi uma consequência da nova linha orientadora derivada do novo modelo contecioso de cariz subjectivista, profundamente assente na ideia de tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, e que por consequência influenciou toda a orientação dos meios processuais. A reforma constitucional abriu assim a porta para a criação de um novo meio processual de natureza condenatória baseado na acção de condenação à prática do acto devido como uma modalidade de acção adminstrativa especial, onde o critério determinante será então a posição substantiva do particular no quadro da concreta relação jurídica administrativa e não o acto administrativo praticado ou omisso da Administração. Este pedido permite a condenação da Administração nos casos de omissão de actuação, como nos casos de emissão anterior de acto de contéudo negativo ilegal.

Os pressupostos processuais da condenação à prática do acto devido encontram-se regulados no art. 67 do Código de Processo Administrativo, referindo-se o primeiro à existência de uma omissão de decisão por parte da Administração ou a prática de um acto administrativo de contéudo negativo, distinguindo três situações legalmente previstas que poderão ser reduzidas a duas situações: a existência de uma omissão administrativa (al. a)) ou a existência de um acto de contéudo negativo, pois tanto a recusa da prática de um acto favorável (al. b)) como a recusa liminar da Administração a pronunciar-se (al. b)) conduzem ao mesmo resultado. Assim, para que essa omissão seja juridicamente relevante é necessário que tenha existido um dever de actuação por parte de um orgão da administração desencadeado por um pedido do particular, e logicamente, não tenha havido qualquer decisão dentro do prazo legalmente estabelecido.

No passado, a regra para tratar estes casos seria considerá-los como tacitamente indeferidos, a fim de permitir a sua impugnação contenciosa. Só que através da mudança operada no aparelho contencioso administrativo fruto essencialmente da revisão constitucional de 1997 e da efectividade da tutela plena dos direitos subjectivos dos particulares, permite-se agora que os particulares solicitem directamente a condenação da Administração na prática do acto devido. Esta possibilidade dada pelo o legislador vem terminar um processo de impugnação de que alguns autores, como o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva denominaram de "actos fingidos", afastando a anterior prática que levava os tribunais a anular os tais fingidos actos administrativos. A admissibilidade de acções condenatórias da Administração teve como consequência, e de acordo com as posições de Mário Aroso de Almeida e de Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva, que "o artigo 109º, nº1, do CPA é tacitamente derrogado na parte em que reconhece ao interessado a faculdade de presumir indeferida a sua prentensão, para poder exercer o respectivo meio legal de impugnação".

E na questão em que a omissão administrativa equivale ao deferimento tácito (art. 108º do CPA)? De acordo com a doutrina do Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva (ao contrário com a de Mário Aroso de Almeida), considera igualmente que nestes casos não estamos perante de um verdadeiro acto administrativo, não se devendo afastar a possibilidade de pedidos de condenação na prática do acto devido. O Professor continua explicando que devemos distinguir a produção de efeitos consequentes de uma "ficção legal" fruto da conduta omissiva da Administração da actuação intencional desta, materializada num procedimento administrativo destinado à emissão de um acto administrativo. Trata-se no caso do deferimento tácito, de entre várias questões subsequentes, de uma tentativa de criar um equílibrio entre uma solução destinada a desburocratizar a actividade administrativa (art. 267º CRP e art. 10º do CPA) e dotá-la de uma maior eficiência através da eliminação de alguns «aprovações meramente burocráticas» e o surgimento de acrescidas exigências de decisão efectiva por parte dos orgãos administrativos que podem ser de massa, as quais obrigam à ponderação de interesses múltiplos e contraditórios e que não se compadecem com esquemas rígidos de presunções legais. No ponto de vista dos direitos dos particulares, é menos necessária a existência de "mecanismos compensatórios" para os défices de funcionamento da Administração, sabendo que agora é possível, devido a um novo sistema Contecioso de plena jurisdição, que os particulares reajam através de um pedido de condenação da Administração na prática do acto devido contra omissões ilegais podendo ser acompanhados por medidas cautelares (art.66º,3). O Prof. Vasco Pereira da Silva entende igualmente que se deveria repensar o próprio proprósito de existência (ou inexistência neste caso) desta "ficção legal", chegando a colocar a hipótese de se afastar esta figura do Código do Procedimento Administrativo. Em relação ao contéudo das sentenças, a medida da condenação corresponderá ao âmbito de vinculação da Administração, ou seja, do contéudo do direito do particular, visto que existirá uma sentença condenatória quando o particular for titular de um direito a uma determinada conduta por parte da Administração e esta não actuou ou não praticou um acto administrativo quando estaria legalmente vinculada a actuar ou a praticá-lo. Pode-se considerar a existência de duas principais modalitades de sentenças resultantes da sub-espécie da acção declarativa especial em análise: as que condenam à prática de um acto administrativo cujo o contéudo é determinado pela sentença; e aquelas que cominam à prática de um acto administrativo cujo o contéudo é relativamente indeterminado na medida em que estão em causa escolhas da responsabilidade da Administração e em que o tribunal indica a "forma correcta" do exercício do poder discricionário. Estas são inspiradas nas "sentenças indicativas", verificando-se quando existe uma mera omissão como quando estamos perante um caso de um acto administrativo desfavorável, resultando portanto numa espécie de sentenças mistas que se referem ao aspecto condenatório obrigando à prática do acto administrativo como aos aspectos vinculado do poder em questão, com uma vertente declarativa de simples apreciação permitindo ao tribunal orientar a Administração nos casos de discricionariedade.

Mesmo admitindo que o deferimento tácito constitui um acto administrativo, isso não seria base suficiente para afastar a possibilidade de propor uma acção condenatória já que esta pode ter como objecto uma actuação administrativa desfavorável e não apenas uma omissão. Assim, a única objecção procedente não teria a ver com o facto de existir ou não um acto administrativo, mas sim que o deferimento tácito ter efeitos positivos, ou seja, revelar-se em príncipio favorável para o interessado e não desfavorável. Mesmo nestas circunstâncias, entende mais uma vez o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva, que não se pode afastar as acções condenatórias derivadas de um deferimento tácito em duas circunstâncias: na hipótese de deferimento tácito ter sido formado nos termos da lei mas não corresponder integralmente às pretensões do interessado, sendo nessa medida considerado como parcialmente desfavorável e passível de acção condenatória; e na segunda circunstância de o deferimento tácito, estando inserido numa relação multilaterial, ser favorável apenas a determinados sujeitos, correspondendo a uma omissão administrativa geradora de efeitos desfavoráveis. Como exemplo temos o caso do deferimento tácito de avaliação de impacto ambiental previsto no art. 19º, do Decreto-Lei nº69/2000 de 3 de Maio que através da pretensão favorável do pedido do particular cria subsquentes actos desfavoráveis relativamente aos outros sujeitos da relação jurídica multilateral. Nestas situações onde não existe um acto administrativo (para além do ficcionado) mas existem efeitos desfavoráveis relativamente ao requerente ou aos outros sujeitos da relação, a melhor forma de reacção será o da sentença condenatória em acção administrativa especial, afastando por completo a antiga prática anulatória de um acto ficcionado com a reforma do Contencioso Administrativo.


Bibliografia

Pereira da Silva, Vasco, " O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo Processo Administrativo", 2ª Edição, Editora Almedina, Março 2009

Rebelo de Sousa, Marcelo; Salgado de Matos, André, "Direito Administrativo - Tomo III Actividade Administrativa", 1ªa Edição, Editora Dom Quixote, Fevereiro 2007

Francisco M. Ferrão - nº 140106101

Do Recurso à Acção

1. O Recurso

O contencioso administrativo português era, até à sua reforma “constitucional” e “ordinária” – ocorrida entre 1976 e 2004 -, caracterizado por ter uma dimensão objectiva, a qual assumiu uma ossatura mais estruturada com a Constituição autocrática de 1933 e com o Código Administrativo de 1940.
Nessa dimensão, os princípios da legalidade e da tipicidade norteavam a apreciação da actuação da Administração Pública que, no exercício do “jus imperii”, condensava no acto administrativo definitivo e executório a relação do poder executivo com os “administrados”.
Os tribunais administrativos tinham, assim, que sindicar a legalidade dos actos ou contratos – estes taxativamente enumerados no artigo 815º do Código Administrativo e no Regulamento dos Tribunais Administrativos, se bem que uma corrente de tendência germanófila entendesse que tal lista era ilustrativa e não fechada – praticados e celebrados pela Administração, competindo-lhes manter os actos ou revogá-los por anulação, caso os mesmos enfermassem de vícios de forma ou de substância (violação de lei, incompetência ou usurpação de poderes), ou, ainda, declará--los nulos.
A Administração Pública era transmudada em autoridade recorrida nos casos em que, por actos ou mesmo omissões, “definisse” unilateralmente a situação jurídica concreta dos “administrados”, indeferindo pretensões ou derrogando direitos.
Através do privilégio da execução prévia, a Administração Pública impunha coactivamente as decisões e deliberações que aprovaava com dispensa do recurso a uma prévia decisão dos tribunais para o efeito. Esta realidade iluminava-se nos chamados despejos extra-judiciais: a Administração, senhoria de habitações de renda económica ou social, procedia ao despejo dos utentes dessas habitações por acto administrativo sem recurso aos tribunais e, eventualmente, com a colaboração das forças policiais.
Ao juiz não competia omitir juízos de valor ou pronunciar-se sobre o mérito dos actos e omissões da Administração mas apenas verificar o modo como a lei era aplicada aos casos concretos. Era o reino do “contencioso de anulação”.
Os “administrados”, que eram tidos e encarados como auxiliares da realização da justiça, pois, colaboravam na procura e prova da verdade e na supressão das ilegalidades do mundo jurídico, efectuada pelos tribunais na defesa da legalidade e na prossecução do interesse público, tinham, para aceder a esse patamar, que provar que eram titulares de um interesse directo, pessoal e legítimo.
Essa titularidade facultava-lhes a apresentação do pedido de expurgação da ilegalidade do ordenamento jurídico mas não lhes era reconhecida a titularidade de direitos subjectivos nem lhes era conferido o estatuto de parte processual se bem que os requisitos da pessoalidade e da legitimidade remetessem mais para a relação jurídica material controvertida e não para a relação processual. Isto é: esta conexão à realidade substantiva, que pressuporia uma consequente intervenção processual em “pé de igualdade” com a contraparte pública, não tinha sequência no processo de contencioso e os particulares não eram tidos como parte processual.

2. A Constitucionalização e a Reforma

O recurso contencioso assim configurado era harmónico e articulava-se com
a natureza autoritária e com a estrutura corporativa do regime que vigorou ao abrigo da Constituição de 1933.
A denominada democracia orgânica retirava aos cidadãos o direito à expressão política e sócio-económica pois, inexistia a pluralidade de partidos e as profissões eram filtradas pelos organismos (grémios e sindicatos) “coordenados” pela Administração Pública e pelo poder político. Logo, o sistema corporativo asfixiava o cidadão na sua dignidade de pessoa e sublimava a afirmação real e efectiva dos seus direitos, acantonados num catálogo formal que uma Administração Executiva geria e aplicava de forma autoritária.
No entanto, a evolução do Estado Social, e a sua modulação em Estado-Providência, convocou o Estado a se apetrechar e dotar da capacidade para satisfazer as necessidades económicas, sociais, culturais, educacionais, de saúde e segurança social bem como de justiça que as novas realidades do pós segunda guerra mundial colocaram aos países.
A Administração Executiva cede o passo à Administração Prestadora ou Infra-estrutural e respaldada do extinto regime autoritário foi confrontada com os postulados, princípios e valores democráticos. A dignidade da pessoa humana e o novo catálogo de direitos, liberdades e garantias, com a concomitante garantia do acesso à justiça por todos os cidadãos foram caldeados com a consagração de um conjunto de princípios – da igualdade, proporcionalidade, imparcialidade, justiça e da boa fé – que recortavam um novo e distinto relacionamento do poder executivo e da Administração Pública em geral com os, “hélas”, cidadãos.
A Administração deixou de, através dos actos administrativos definitivos e executórios, decidir unilateralmente sobre os direitos e interesses dos cidadãos. Estes passaram a integrar o processo de formação da decisão pública quer através do direito de audição prévia quer por força do direito de pronúncia sobre o teor das decisões que os afectam (por exemplo, nas adjudicações de empreitadas, fornecimentos ou prestações de serviços públicos).
A Constituição de 1976 e as suas sucessivas revisões, que consagraram esses princípios e direitos, estatuíram, deste modo, o direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares.
O legislador constituinte viabilizou, assim, não só a impugnação dos actos administrativos e a interposição das medidas e providências cautelares que permitem a suspensão imediata da eficácia daqueles actos bem como e, acima de tudo, as acções de apreciação e reconhecimento de direitos e a condenação da Administração, inclusive, na prática da conduta devida nos casos em que a omissão tenha lesado direitos ou interesses dos particulares.
Desta tarefa se incumbiu a reforma de 2004 que assegurou a tutela jurisdicional efectiva.
O Código de Processo Administrativo veio admitir os instrumentos e meios processuais seguintes:
- a acção administrativa comum (artigos 37º e seguintes);
- a acção administrativa especial (artigos 46º e seguintes);
- os processos de natureza urgente (artigos 97º e 109º e seguintes);
- os processos cautelares (artigos 112º e seguintes);
- o processo executivo (artigos 157º e seguintes).

3. A Acção de Impugnação

A constitucionalização do contencioso administrativo determinou o declínio do
protagonismo do acto administrativo, datado sociológica e politicamente enquanto expressão do “jus imperii” dos entes públicos, que cedeu o seu lugar e relevo processuais aos cidadãos, ora, sujeitos do processo e se recolheu à condição de objecto do processo.
Com o abandono da concepção “actocêntrica” do Direito Administrativo, que orbitava, em “huis–clos”, em terno dos “privilégios autoritários”, passa a ser reconhecida e é dado foro de cidadania à titularidade dos direitos subjectivos dos particulares no seu relacionamento com a Administração Pública e, em aprofundamento do princípio da igualdade e do respeito e primado da lei e do Direito pelas autoridades administrativas, os particulares recebem e ganham o estatuto de partes no processo contencioso.
O juiz dos tribunais administrativos, na análise dos seus poderes de pronúncia e de legitimidade dos particulares que deveriam ser titulares de um interesse directo, pessoal e legítimo para acederem à fase da impugnação contenciosa, continua a ponderar o meio processual adequado mas, sobretudo, tem em atenção a natureza e conteúdo do pedido constante dos requerimentos impugnatórios apresentados pelos particulares.
E, dessa maneira, às sentenças de mera anulação de actos administrativos ilegais assiste-se à emergência das sentenças qualificadas em função dos pedidos formulados: de simples apreciação de direitos ou situações jurídicas, de condenação, e, ainda, as de anulação.
Estas sentenças obtidas maioritariamente através das acções administrativas comuns e especiais passam a ilustrar a vivência da tutela efectiva e garantia dos direitos subjectivos dos cidadãos.
A letra do Código do Processo Administrativo tem levado a que seja cometido à acção administrativa comum o julgamento de todos os litígios que não possuam uma regulação especial e à acção administrativa especial o dos processos concernentes a actos e regulamentos administrativos.
Esta repartição processual é passível de censura e crítica pois, a “especialidade” assim vista resulta de conceitos transportados do antanho, como, por exemplo, o carácter “sui generis” do direito administrativo em relação ao direito civil, quer em sede substantiva quer na processual e não explica e não soluciona nem o regime de cumulação de pedidos nem ajuda nem facilita a compreensão da proliferação terminológica dos meios e modalidades processuais (acções sub-especiais em relação à acção especial e “regime especial” da “acção especial” na impugnação dos actos formativos dos contratos administrativos).
Em conclusão, dir-se-á que os “administrados” do contencioso autoritário de anulação são os sujeitos e partes no processo da acção administrativa democrática, porque reconhecidos, por via constitucional e legal, como titulares de direitos subjectivos e de interesses protegidos no seio e conceito de uma Administração Prestadora e Infra-estrutural e de uma Justiça Administrativa plena e a todos garantida, gerada num Contencioso Administrativo de plena jurisdição.

Bibliografia:

- AMARAL, Diogo Freitas do, "Curso de Direito Administrativo", Vol. II, Almedina, Coimbra, 2008;

- SILVA, Vasco Pereira da, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo", 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009.

João Câmara
Aluno nº 140107003

Acórdão

TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DO CÍRCULO DE LISBOA

Acórdão do Tribunal Administrativo n.º 23/2010

Processo nº 6666/10 – Pleno da 1ª Secção

Acordam, em conferência, no Pleno da 1.ª Secção do Tribunal Administrativo:

1. Relatório
Francisco Sigmundo Armado em Esperto (doravante Francisco Esperto) e ‘Somos da Inteira Confiança’ S.A (doravante SIC) produzem alegações nos termos das quais se conclui o seguinte:
I. O Estado actuou violando o art.24º, nº1alí. c) do Código dos Contratos Públicos pois não se verificam as condições que justificam o recurso a ajuste directo
II. Havendo preterição de concurso público é nulo o procedimento e subsequente contrato
III. A situação de urgência imperiosa é imputável ao Estado
IV. Francisco é parte legítima da presente acção
V. A Demanda da empresa “Million Dollar Vehicle” (doravante MDV) é impossível pelo encerramento da mesma empresa.
O Ministério da Administração Interna, Réu, apresentou vários argumentos dos quais se conclui o seguinte:
I.Na reunião da SIC com o ex Secretário de Estado esta ofereceu-se para vender ao Estado os seus blindados
II.A SIC foi informada de que seria realizado ajuste directo
III.Houve um incêndio no armazém onde estavam contidos blindados que iriam ser utilizados na Cimeira
IV.O incêndio é imputado ao Estado
V.O Incêndio não consubstancia razão bastante para recorrer ao ajuste directo
Foram os autos submetidos a conferência para julgamento



2. Questões a analisar
Em primeiro lugar, cumpre analisar a invalidade ou não do contrato celebrado entre a MDV e o Estado celebrado em 15 de Setembro de 2010.
Em segundo plano, há a averiguar se há lugar a responsabilidade extra – contratual do Estado perante a empresa SIC, por não ter havido concurso Público, que daria oportunidade, à mencionada SIC de expôr as suas competências, estratégias e produtos, e possivelmente celebrar contrato relativo aos veículos blindados com o Estado.

3. Fundamentação
Quanto às partes em litígio vem o tribunal reafirmar a legitimidade do Autor Francisco Esperto, reafirmando também que, como havia já sido referido no Despacho Saneador proferido a 12 de Dezembro de 2010, não assiste neste aspecto razão aos réus.
Com efeito, da conjugação do artigo 9º nº 2 do CPTA com os artigos 27º e 52º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, e tendo ainda em conta o disposto na Lei 83/95 relativa ao Direito de Participação Procedimental e de Acção Popular, se retira que Francisco Esperto é parte legítima no processo, remetendo-se para a fundamentação dada por este tribunal no já aludido Despacho Saneador.
Quanto à necessidade da presença da empresa MDV em juízo, efectivamente esta teria interesse legítimo na manutenção do acto impugnado e como tal configurar-se-ia uma situação de litisconsórcio necessário passivo – artigos 10º e 57º CPTA.
No entanto, depois de inúmeros esforços e tentativas frustradas no sentido de contactar e citar a dita empresa, o Tribunal veio a conhecer do encerramento de portas da mesma, tendo recebido a secretaria do Tribunal a Declaração de Cessação de Actividade e o Registo Comercial de Dissolução da Empresa MDV.
Neste sentido, viu-se o Tribunal obrigado a conhecer do mérito da causa com as partes possíveis em juízo.

3.1. Quanto à primeira questão, Francisco Esperto pede a anulação do contrato.

O autor Francisco Esperto, alega a falta de utilidade da compra dos veículos blindados, visto a cimeira já ter ocorrido.

Uma das formas de impugnação do acto é através de um pedido de anulação do acto administrativo (art. 46º, nº 2 alin. a) do CPTA). Ao abrigo do art. 51º do CTPA são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa. É este o caso sub judice, visto que o autor quer anular um acto cuja eficácia põe em causa um interesse público.

Ao abrigo do art. 58º do CPTA os prazos para intentar a acção estão cumpridos, estando assim reunidas as condições para o autor intentar a acção.

No entanto, o autor invoca como causa de pedido da anulação do contrato o facto do contrato não ter sido cumprido. Ora, tanto à luz das regras gerais do Direito das Obrigações ( art. 790º e seguintes do Código Civil), como ao abrigo do art. 325º do Código dos Contratos Públicos, o incumprimento do contrato não gera qualquer tipo de invalidade. Estamos apenas no âmbito de um incumprimento do contrato, que por perda do interesse da parte do comprador, faz operar a resolução do mesmo (mas nunca anulabilidade do contrato) - nº 2 do mesmo artigo do Código dos Contratos Públicos.
Como tal, o tribunal considera improcedente o pedido de anulação do contrato pela causa de incumprimento. Há que ter em conta que não há lugar a invalidades por factos supervenientes. As invalidades são baseadas em factos originários e o facto do contrato não ter sido cumprido, não faz dele nulo.

Há, no entanto, uma causa de anulabilidade do contrato. O facto de se ter recorrido ao ajuste directo, sem estarem cumpridos os requisitos de urgência, em vez de se ter optado pelo concurso público, origina uma violação legal nos termos dos artigos 283º e 285º do Código dos Contratos Públicos. Como não cabe em nenhum dos casos do art. 133º do CPA, estamos perante a regra da anulabilidade do contrato (art. 135º CPA).

Assim sendo, o contrato celebrado entre o Ministério da Administração Interna e a MDV é anulável nos termos gerais do CPA.

3.2. Quanto à pretensão formulada pela autora (a SIC):

Considerando que a escolha do tipo de procedimento na modalidade do ajuste directo, independentemente do valor estimado da despesa pública envolvida, configura um agir administrativo no âmbito do poder vinculado quanto às circunstâncias de facto verificáveis na sua realidade concreta, por reporte ao elenco taxativo de pressupostos estatuído no artigo 24º nº1 al. c) do Código dos Contratos Públicos

Considerando que nos termos da disposição da alínea c) do nº 1 do artigo 24º do Código dos Contratos Públicos, para que se considerem preenchidos os requisitos da adjudicação por ajuste directo é necessário que, cumulativamente, tenham ocorrido factos imprevisíveis que determinem a urgência da adjudicação e que tais factos não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante.

Considerando que a subsunção das circunstâncias do caso concreto aos pressupostos legais passa pela averiguação do sentido dos conceitos abstractos indeterminados utilizados na lei, a saber, razões de “urgência imperiosa” na decorrência de “acontecimentos imprevistos”, “não imputáveis” à entidade adjudicante.

Tendo em conta a matéria de facto provada, o presente tribunal considera que, se o incêndio que deflagrou a 12 de Setembro de 2010 no armazém onde se encontravam todos os veículos blindados do Comando Distrital de Lisboa da PSP criou de facto uma situação de urgência que pode ser qualificada de imperiosa, não ficou suficientemente provado que essa situação decorresse de acontecimentos imprevistos e não imputáveis à entidade adjudicante. Pois, com efeito, resulta da investigação pericial que o incidente foi devido a um curto-circuito e que esse dito curto-circuito ocorreu devido ao nível de humidade local. Ora, é conhecido que a humidade é um factor que geralmente aumenta as probabilidades de tal incidente. Este curto-circuito era portanto previsível. Cabendo ao Estado assegurar-se das boas condições do local onde guarda o seu material de guerra, a circunstância de ter deflagrado um incêndio no dito armazém por ocorrência de um curto-circuito não pode deixar de ser considerada imputável ao Estado.

Considerando que tanto basta para concluir pela não verificação, no caso sub judice, de dois dos pressupostos exigidos no artigo 24º nº1 al. c) do Código dos Contratos Públicos para o Estado poder contratar a MDV por ajuste directo.

Considerando que a declaração de nulidade do acto sub judice gera a nulidade do contrato que adveio desse mesmo acto, por força dos artigos 133º nº1 do CPA, como exposto anteriormente, nas conclusões ao ponto 3.1. .

Considerando que nos termos do art. 7º da lei nº 67/2007, o Estado incorre em responsabilidade civil extra contratual, visto que o acto pelo qual o Estado recorreu ao ajuste directo e não ao concurso público é ilícito. No mínimo, o Estado deve incorrer em responsabilidade sob culpa leve, nos termos dos artigos 9º, nº 1 e 10º, nº2 da mesma lei.

Considerando que a actuação desconforme à lei do Estado provocou um dano à SIC por esta não ter tido a oportunidade de participar no concurso público legalmente exigido.

Considerando que a condenação do Estado nas custas não constitui reparação suficiente do dano sofrido pela SIC deve ser acrescido montante indemnizatório de parte do que é pedido pelos autores


4. Decisão
Com os fundamentos expostos, o Tribunal decide:

a) Anular o contrato celebrado entre a empresa MDV e o Estado em Setembro de 2010 em consequência da declaração de anulação do acto de ajuste directo que lhe deu lugar;
b) Responsabilizar extra – contratualmente o Estado relativamente ao facto de ter optado por ajuste directo em detrimento do instituto de concurso público, sem razões satisfatórias que preencham os requisitos do referido artigo 23º do Código dos Contratos Públicos no total de 500 mil euros.
c) Condenar o Réu nas custas.


Publique-se, nos termos do artigo 152º, n.º4 do CPTA.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2010.

- Benedita Sampaio Nunes – 140107508 - Catarina Granadeiro – 140107016 - Luisa Nobre Guedes – 140106126 - Luisa Teixeira da Mota – 140106111 - Maria Norton dos Reis – 140107073.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Dispositivo vs Inquisitório

Dispositivo ou Inquisitório?

A doutrina não é unânime, nem tão pouco o é a jurisprudência. Muito se discute a propósito do espírito da segunda parte do nº 2 do artigo 95º do CPTA. Será apenas a reiteração do princípio jura novit curia, consagrado no artigo 75º CPTA, mantendo-se intocado o princípio do dispositivo no âmbito do Contencioso Administrativo? Ou será a consagração do princípio do inquisitório no que toca a processos impugnatórios de acto administrativo? Procurando dar resposta a estas questões, são três as grandes teorias que se pronunciam a propósito da matéria: teoria subjectivista, teoria objectivista pura e teoria objectivista moderada.

Defensor da tese subjectivista, o professor Vasco Pereira da Silva sustenta que no nº2 do artigo 95º do CPTA encontra-se apenas uma confirmação do número anterior, e não uma excepção ao mesmo. O juiz encontra-se limitado pelo objecto do processo, pelos factos que lhe são apresentados pelas partes, pois o que está sempre em causa são os direitos dos particulares e uma actuação administrativa lesiva desses mesmos direitos, e não a defesa da legalidade. O que não invalida no entanto, o dever do juiz de “identificar” ilegalidades do acto administrativo diferentes das apresentadas pelo autor. E note-se que “identificar” não se confunde com trazer factos novos ao processo, significa apenas que o juiz pode re-qualificar juridicamente os factos apresentados pelas partes quando assim o entenda. Assim, por exemplo, se uma das partes com base em certos factos invoca a anulabilidade, pode o juiz entender que com base nesses mesmos factos o que está em causa é uma nulidade. Trata-se de um alargamento do princípio jura novit curia, através da superação de uma visão restritiva da causa de pedir correspondente à técnica dos vícios do acto administrativo. Desta forma, temos consagrado no nº2 do artigo 95º do CPTA não o Princípio do inquisitório mas sim o Princípio do dispositivo.

De acordo com a segunda teoria, também denominada de teoria do conhecimento oficioso pleno, o que está em causa é a tutela da legalidade. Desta forma, o preceito atribuiria ao juiz o dever de ir à procura de vícios do acto administrativo para além daqueles aduzidos pelo autor. O tribunal deveria, para tanto, olhar não só para os factos trazidos ao processo pelas partes como também qualquer outro facto de que tenha tomado conhecimento, nomeadamente pela análise do processo instrutor junto aos autos por efeito do artigo 84º do CPTA. Significa isto dizer que ao juiz incumbe a tarefa (porventura árdua) de percorrer todo o procedimento de criação do acto impugnado à procura de novas causas de invalidade que escaparam ao próprio autor. Esta tutela da legalidade faz-nos recordar os velhos traumas da infância do direito administrativo, quando o particular era tido como apenas um auxiliar no processo, que visava não à defesa de seus direitos, mas sim à tutela da legalidade.

De acordo com a terceira teoria, também conhecida como teoria do conhecimento oficioso mitigado, o que neste preceito se encontra é um princípio do inquisitório restrito (ou um dispositivo alargado, dependendo da perspectiva, copo meio cheio ou meio vazio). A tarefa do tribunal de buscar novos vícios é restringida aos factos trazidos ao processo pelas partes. O juiz poderia, assim, transformar factos meramente instrumentais em principais, consubstanciadores de alguma causa de invalidade que não tenha sido alegada pelas partes. A letra da lei oferece suporte a esta tese uma vez que proscreve o dever de ‘identificar’ a existência de causas de invalidade e não de ‘introduzir’ novos factos. Desta forma, a legalidade é subsidiariamente tutelada, mas através de uma busca com menor âmbito. O juiz tem o dever de levantar ‘novas’ causas de invalidade, mas só o pode fazer dentro daquilo que as partes alegaram, mesmo que a título incidental. Basicamente, o juiz deve identificar as causas de invalidade que as partes revelaram ‘sem querer’ ou ‘sem saber’. De qualquer forma, vigora a limitação imposta pela primeira parte do nº 2 do artigo 95º CPTA, segundo a qual o juiz não deve pronunciar-se sobre uma causa de invalidade “quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito”. Por outro lado, pode o autor restringir a sua causa de pedir, ao abandonar expressamente fundamentos que havia levantado (91º, 5 CPTA).

Em jeito de conclusão, julgo que a teoria do conhecimento oficioso pleno deve ser rejeitada. Um dos grandes problemas que esta teoria apresenta é que põe em causa a imparcialidade do juiz, que passa a agir como parte no processo. O problema torna-se mais evidente quando há contra-interessados no processo, que, sob esta lógica, teriam não só de rebater os argumentos aduzidos pelas partes mas também a fundamentação do juiz para justificar a inclusão de ‘novas’ causas de invalidade. O juiz então terá de apreciar a bondade de sua própria fundamentação, tarefa, no mínimo, complicada. E o pobre contra-interessado terá de trabalhar em dobro!
Afastado assim, o princípio do inquisitório (pelo menos pleno) neste preceito, resta saber se devemos continuar no caminho de um contencioso cada vez mais subjectivista, em que o que devemos tutelar são apenas os direitos dos particulares, ou se, pelo contrário, um compromisso entre a tutela dos interesses dos particulares (tendo sempre em conta que é este o aspecto principal do processo) e a tutela da legalidade (ainda que a título secundário) deve ser considerado.

Raquel Henriques - 140107055

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Providências Cautelares no novo contencioso administrativo

No âmbito das providências cautelares, o legislador procurou suprir algumas deficiências do regime jurídico anterior, permitindo que as providências cautelares de condenação provisória num determinado comportamento sejam dirigidas quer contra um particular, quer contra a Administração.
Embora sendo verdade que os Tribunais Administrativos podiam já conceder providências cautelares, aplicando subsidiariamente as regras do CPC, a sua aplicação cingia-se à suspensão da eficácia de actos administrativos.
Verifica-se, assim, um alargamento substancial da tutela cautelar no novo contencioso administrativo. E é nessa linha que surge o art. 112º do CPTA, no qual o legislador vem reconhecer aos tribunais administrativos a possibilidade de adoptarem a providência cautelar, antecipatória ou conservatória, que considerem mais adequada a garantir o efeito útil da sentença a proferir no processo principal.
Nos casos em que a parte interessada procure manter ou conservar uma situação que a actuação da Administração possa prejudicar, a parte interessada vai procurar a abstenção da Administração, a qual será provocada pelo tribunal.
No fundo, é dirigida uma ordem à Administração para que esta deixe de realizar a actividade susceptível de prejudicar a efectividade das pretensões da parte interessada.
À luz do art.120º/1/b, a providência conservatória depende de dois requisitos essenciais: terá de se verificar receio da constituição de uma situação de facto consumado ou um prejuízo potencialmente irreversível (aquilo que se designa por periculum in mora); e não poderá ser manifesta a falta de fundamento da pretensão do autor. Basta, portanto, que se não afigure evidente decisão judicial, em sede de pedido principal, contrária à pretendida pelo autor. Trata-se de um fummus boni iuris, na sua dimensão negativa, atendendo à natureza da própria providência conservatória face à providência antecipatória.
A emissão de providências antecipatórias prende-se com a tentativa do interessado em obter a adopção de medidas por parte da Administração, podendo envolver a prática de um acto administrativo - o interessado pretende que a Administração adopte uma conduta favorável às suas pretensões. Esta providência cautelar surge, assim, para minimizar os efeitos da inércia da Administração em adoptar a referida conduta, concretizando-se na imposição, ainda que provisória, à Administração da adopção de medidas tendentes a minimizar as consequências do periculum in mora, antecipando assim o efeito pretendido no processo principal.
É de notar que, se na primeira se verifica a manutenção provisória de uma situação de facto, já a segunda concebe a criação provisória de uma nova situação jurídica, o que na perspectiva de eventuais terceiros interessados e, ainda, do interesse público, representa uma situação que exige maior limitação (daí que se exija, quanta esta, o fummus boni iuris, na sua dimensão positiva). Nos termos e para os efeitos do art. 120º a concessão de providências cautelares está conexa com o critério do periculum in mora e com o do fumus boni iuris, e depende da estreita articulação entre os dois, ponderando os vários interesses e procurando atingir um maior equilíbrio processual.
De resto, convém referir que estes dois pressupostos não são suficientes por si só, devendo ser complementados pelo critério da proporcionalidade no seu sentido mais estrito, conforme resulta do art.120º/2 CPTA. Significa isto que os efeitos gerados pela providência cautelar não podem acarretar maiores prejuízos do que aqueles que se pretende evitar através da própria providência.
Temos assim mais um exemplo da amplitude de pretensões que os particulares passam a ter ao seu dispor no âmbito do processo administrativo, o que permite falar numa verdadeira e própria tutela jurisdicional.


Catarina Andrade 140106034

A competência como pressuposto processual

A competência é o poder que deriva do fraccionamento do poder jurisdicional entre os diferentes tribunais existentes na nossa ordem jurídica e constitui um pressuposto processual positivo, ou seja, é um requisito essencial, sem o qual, o juiz não se pronuncia sobre procedência ou improcedência do pedido.

Por pressupostos processuais são elementos necessários para que o juiz possa proferir decisão sobre o pedido formulado, desta feita, faltando um pressuposto processual, o juiz deve-se abster de apreciar o mérito do pedido, absolvendo o réu da instância. A competência constitui, assim, um dos pressupostos processuais (alem da personalidade e capacidade judiciaria e legitimidade) enquadrada no âmbito das questões prejudiciais, essenciais à formação da instância.

Debruçando-nos sobre o requisito processual competência, é imperativo analisar em 3 níveis de concretização – em razão da matéria, em razão da hierarquia e em razão do território, no que diz respeito aos Tribunais Centrais Administrativos (TCA’s) e aos Tribunais Administrativos de Círculo (TAC’s).

A repartição de competência está agora simplificada, pois, os TAC’s passaram a ser competentes para conhecer em primeira instância todas as questões dirigidas à jurisdição administrativa, sendo esta atribuição quase exclusiva e universal, na medida em que, são raras as situações em que, tanto os TCA’s como o Supremo Tribunal Administrativo (STA) ainda funcionam como tribunais primários., o que contribui para a concretização de um dos princípios do Direito Administrativo, a celeridade.

Quanto à competência em razão da matéria - os TAC’s têm competência para conhecer em primeira instância de quase todos os processos dirigidos à jurisdição administrativa (art. 44º), excepto nos casos em que essa competência recaí, a título excepcional, nos TCA’s e o STA (art. 37º c) e 24º, nº1, alíneas a) e f) do ETAF.

Quanto à competência em razão da hierarquia – uma vez que, está previsto um duplo grau de grau de jurisdição, e em certos casos um terceiro grau até, cumpre a certos tribunais administrativos superiores conhecerem em sede de recurso jurisdicional de decisões proferidas por um tribunal inferior, dentro dos limites das alçadas e em função do valor dos processos e em função da natureza das causas. Deste modo, das decisões dos TAC’s cabe recurso jurisdicional para a secção de contencioso administrativo do TCA e eventualmente para o STA, se for admitido recurso per saltum (art. 37º a) do ETAF). Dos acórdãos dos TCA’s proferidos em primeiro grau de jurisdição e também, quando admitido o recurso de revista, cabe recurso para a secção de contencioso administrativo do STA (art. 25º nº1 a) do ETAF). No que concerne as decisões dos tribunais arbitrais cabe recurso para os TCA’s (art. 186º CPTA e art.37º b) do ETAF).

Em relação à competência em razão do território – dentro de cada jurisdição, e no mesmo grau de jurisdição, a repartição do poder de julgar faz-se em função do território. Após determinar que a pretensão é da competência dos tribunais administrativos e tem que ser deduzida num tribunal de primeira instância, e como já vimos que os TAC’s são por regra os tribunais que decidem em primeiro grau, vejamos agora, em qual deles deve dar entrada a pretensão.

A competência em razão do território é a competência que resulta de aos vários tribunais, das mesma espécie e do mesmo grau de jurisdição, ser atribuída uma área geográfica própria de competência, a qual chamamos de circunscrição, e de a lei localizar as acções nas diferentes circunscrições mediante um elemento de conexão que considera decisivo para esse efeito, tendo como objectivo, facilitar o acesso aos tribunais e a realização de uma boa administração. Cabe-nos em primeiro lugar, saber qual é a sede e a área de jurisdição de cada TAC, e em segundo lugar, saber quais são os factores de conexão que o CPTA estabelece.

São eles: o foro do autor, enquanto regra geral, e , o foro da entidade local demandada, o foro da situação dos bens, o foro obrigacional e contratual, e o foro eleitoral (entre outros), enquanto regras especiais.

No que concerne ao regime regra, leia-se, ao foro do autor, estabelece o CPTA no seu art.16º que é da competência do tribunal em cuja circunscrição o autor tem o seu domicílio, ou sede, no caso de se tratar de pessoas colectivas, excepto se não for outro o regime imposto por uma lei especial, regime das quais passaremos a analisar de seguida.

Já fora do regime geral, as acções administrativas especiais relativas à prática ou omissão de normas e actos administrativos das Regiões Autónomas, das autarquias locais e demais entidades de âmbito local, das pessoas colectivas de utilidade pública e de concessionários, devem ser intentados junto do tribunal da área da sede da entidade demandada – art. 20º-1 do CPTA – estabelecendo assim o regime do foro da entidade local demandada.

Quanto às acções que tenham por objecto litígios referentes a imóveis, deve a acção ser proposta no tribunal da situação dos bens, estabelendo, desta feita, o art.17º do CPTA, o regime do foro real ou da situação dos bens.

Já o art.18ºnº1 do CPTA, estabelece o regime do foro obrigacional e contratual, em que, as pretensões em matéria de responsabilidade civil extracontratual, incluindo acções de regresso, são deduzidas no tribunal do lugar em que se deu o facto constitutivo da responsabilidade, enquanto que o art.19º, refere que em matéria contratual, as pretensões são apresentadas no tribunal convencionado, ou, na falta de convenção, no tribunal do lugar do cumprimento do contrato.

Sempre que os pedidos sejam dirigidos à adopção de providências cautelares, estes são julgados pelo tribunal competente para decidir a causa principal (art.20º nº6 do CPTA).

Por último, quando não seja possível determinar a competência territorial por aplicação dos artigos anteriores, é competente o TAC de Lisboa, ex vi, art.22º.

Em jeito de conclusão, cabe-nos referir que, a violação das regras de competência dos tribunais, na propositura da acção, não acarreta sempre a mesma consequência, distinguindo a lei duas categorias de incompetência: a incompetência absoluta e a incompetência relativa. A competência absoluta respeita ao âmbito da jurisdição e verifica-se sempre que a questão seja da competência dos tribunais administrativos, já a competência relativa, refere-se à competência dentro da jurisdição administrativa e existe quando o tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e do território, sancionando a lei de diferentes modos consoante se trate da incompetência absoluta ou incompetência relativa. Na primeira, o CPTA comina com a absolvição da instância, podendo o autor do processo requerer a remessa para o tribunal competente, no prazo de 30 dias, considerando-se a petição apresentada na data inicial (art.14º nº2 e nº3 do CPTA). Quanto à incompetência relativa a sanção é a remessa oficiosa do processo para o tribunal competente, também aqui se considera a petição apresentada na data da sua apresentação no tribunal incompetente.

Evolução histórica do Contencioso Administrativo Moçambicano


Introdução

O surgimento e a evolução histórica do Contencioso Administrativo em Moçambique cingem, de uma forma geral, a história geral do país, isto é, um período colonial e um período pós-colonial. Contudo, a coincidência não é total e perfeita em termos de duração porque, depois da independência do país em 1975, a influência do direito colonial esteve presente até à grande (e substancial) Reforma de 2001 que culminou com a aprovação, pelo Parlamento, da Lei sobre o Contencioso Administrativo (Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho).


O Contencioso Administrativo Colonial ou de Inspiração Colonial (1832-2000)

O surgimento do Contencioso Administrativo em Moçambique é consubstanciado no próprio surgimento de uma jurisdição administrativa em Portugal (país do qual Moçambique dependia, isto é, país colonizador) e na recepção do sistema de administração executiva no país anteriormente referido (o que pressupõe a existência de uma jurisdição administrativa para julgar a Administração Pública na sua actuação). No entanto, a recepção salientada não se realizou no vazio. Existia antes desta uma pré-história do Contencioso Administrativo.


A pré-história do Contencioso Administrativo (…-1831)

Não se pode conceber uma administração sem litígio, seja esse o fruto de conflitos internos ou a consequência de actividades susceptíveis de prejudicar os particulares. Mas pode-se conceber modos de resolução de litígios administrativos ou não jurisdicionais (e particularmente sem a intervenção de qualquer jurisdição administrativa ou jurisdicional), por um lado, e na ausência de uma jurisdição privativa e original do contencioso administrativo, por outro lado.
Essas premissas fundamentam a possibilidade da existência de modalidades de resolução do contencioso administrativo lato sensu antes do próprio surgimento de tribunais especiais encarregados de dirimir litígios administrativos segundo um direito próprio distinto do direito privado.
Essas possibilidades teóricas existiram de facto no âmbito da administração colonial antes de 1832.


A resolução dos litígios administrativos na administração de Moçambique antes de 1832

Antes de 1675, a Coroa portuguesa institui, na colónia de Moçambique, um sistema específico de “governo” – a capitania – com a finalidade de administrar o monopólio real do ouro e do marfim. Um contrato complexo celebrado entre a Coroa e o “capitão” determinava as obrigações de cada parte.
A capitania era um governo pessoal feudal típico. A estrutura burocrática ainda que reduzida, continha uma hierarquia de funcionários e outro pessoal com um ouvidor (juiz) responsável perante o capitão.
Não existia, nesta altura, nenhum “tribunal administrativo” para dirimir qualquer litígio de natureza administrativa e se existia era a premissa de uma garantia contenciosa através do ouvidor (juiz local e responsável perante o capitão), ou seja, o direito aplicável e aplicado não tinha nenhuma especificidade (era o “direito privado”).
De qualquer forma, o ouvidor estava sujeito à autoridade do capitão o que limitava a sua independência e a eficácia das suas próprias decisões (por essa razão, os litígios originados pela actividade da “micro-administração” da capitania eram principalmente resolvidos através de garantias graciosas [e não tanto por garantias contenciosas]).
A partir da segunda metade do séc. XVII, acentuou-se o processo de centralização do poder central (cristalização do absolutismo da realeza que se iniciou no séc. XVI) que se manifestou nas colónias pelo fim do monopólio comercial do capitão em 1675. Na verdade, a existência do monopólio comercial do capitão entrava em choque com a política defendida pela Coroa, daí que o monopólio do capitão tenha dado lugar a uma Junta de Comércio que operava em Moçambique em nome da Coroa e o capitão se tenha tornado apenas num simples funcionário executivo que tratava de obedecer ao vice-rei de Goa. Para Malyn Newitt o fim do monopólio do capitão “significou também o fim de toda uma fase na história administrativa da Europa”. A acentuação do processo de centralização do poder central manifestou-se igualmente pela política de abolição dos prazos que culminou, um século mais tarde, com a aprovação do Decreto de 22 de Dezembro de 1856 que “Abole os prazos da Coroa”. O estudo da regulamentação relacionada com a abolição dos Prazos da Coroa e o seu processo de indemnização permite confirmar que o seu contencioso é da competência do Poder Judicial e que não houve ainda nesta altura “publicização” dos órgãos encarregados de julgar os litígios relacionados com esta matéria.


Da recepção do sistema de administração executiva em Portugal até ao surgimento de uma jurisdição administrativa em Moçambique (1832-1856)

A influência profunda do direito francês está na origem da recepção do sistema de administração executiva em Portugal e, consequentemente, na Província de Moçambique (o que originará uma justiça administrativa nesta mesma Província).


A influência profunda do direito francês

O contencioso administrativo surge, em França, como instrumento de uma política de fortalecimento do Estado e do absolutismo real o que teve influências profundas em relação aos seus caracteres gerais.
A doutrina da unicidade do poder e o princípio da autoridade absoluta do Estado implicaram uma separação entre as funções judiciária e administrativa. Isto significou que a Administração Pública não devia ser mais considerada como um prolongamento da justiça mas como uma actividade específica pertencente ao Governo.
Deste modo, nasce uma tradição segundo a qual a resolução dos contenciosos administrativos pertence à Administração Pública. Tradição contínua desde o Cardeal de Richelieu no “Édit de Saint-Germain” de Fevereiro de 1641 e do Alvara do Conselho do Rei Luís XIV de 8 de Julho de 1661, que reserva a resolução dos litígios envolvendo a Administração Pública aos administradores e ao Governo, até ao surgimento da Revolução de 1789 que mantém esta política herdada do regime anterior. A consagração deste sistema do “Administrador-Juiz” significava o reconhecimento de que o poder administrativo não podia estar sujeito ao controlo dos tribunais, o que marcou toda a evolução futura do Direito Administrativo e do Contencioso Administrativo a que o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva chamou de “pecado original”.
Esta tradição secular transforma-se, em França, numa verdadeira concepção da Justiça Administrativa segundo a qual a resolução dos litígios administrativos é concebida como uma outra forma de administrar e, consequentemente, como uma atribuição dos administradores públicos. É o sistema do “administrador-juiz”, como escreve Grégoire Bigot, “ um belo exemplo da ditadura administrativa na resolução do contencioso”.
O Consulato (1799-1804) põe fim a este sistema. Contudo, a Justiça Administrativa não permanecerá dissociada da Administração Pública. Não é a administração activa que será encarregada da resolução dos litígios de carácter administrativo, mas a administração consultiva. Esses novos órgãos serão encarregados não só de assessorar a administração activa mas também de estatuir sobre as reclamações dirigidas contra a actuação desta. Como observa René Chapus: “É assim que pelo julgamento dos litígios administrativos são criados não “Tribunais” mas “conselhos”: o Conselho de Estado, no plano nacional, os conselhos de prefectura, nos departamentos”.
Deste modo, a concepção da Justiça Administrativa, em França, organiza-se em torno da concepção de um juiz “tendo o espírito do administrador”, um juiz consciente de que as suas decisões devem ser um complemento da acção administrativa. Por outras palavras, decidir em matéria do contencioso administrativo, “é ainda administrar”.
Esta concepção “administrativista” da justiça da administração herdou dos caracteres gerais do contencioso administrativo gracioso a celeridade, economia e forma expeditiva, o que faz ainda hoje, a sua especificidade.
Este conceito de Justiça Administrativa lato sensu foi importado por vários países europeus e outros no mundo através da recepção do sistema de administração executiva ou regime administrativo que pressupõe a existência de uma jurisdição administrativa.
Em Portugal, esta “importação” foi concretamente realizada no séc. XIX com a aprovação da Reforma Administrativa de Mouzinho da Silveira em 1832.


Da Reforma Administrativa de Mouzinho da Silveira à aprovação da Portaria Provincial n.º 395, de 18 de Fevereiro de 1856

Em Portugal, o sistema de administração executiva ou regime administrativo foi introduzido pelo Decreto n.º 23, de 16 de Maio de 1832, durante o segundo regresso ao absolutismo (1828-1834). Da autoria moral de Mouzinho da Silveira, o referido diploma implementou um modelo muito idêntico ao francês (modelo de organização administrativa que se caracterizou por uma excessiva centralização).
O Decreto centralizador n.º 23, de 16 de Maio de 1832, levantou por toda a parte uma onda de francos protestos que culminou com a aprovação de um Código Administrativo amplamente descentralizador – o Código de 1836 – que alargou as atribuições das câmaras municipais.
Por Decreto de 18 de Março de 1842, o Código Administrativo de 1836 foi substituído por um outro – o Código de Costa Cabral – que tinha como principal objectivo, conforme nele se dizia, “eliminar alguns efeitos desastrosos da administração local ocorridos durante a vigência do Código de 1836. De tendência centralizadora, o Código Administrativo de 1842 consagra uma maior intervenção do poder central no poder local o que implicará, além do estabelecimento de uma tutela administrativa mais rigorosa sobre as câmaras municipais, a passagem do contencioso administrativo para as autoridades administrativas.
O Código Administrativo de 1842 foi aplicado logo ao Ultramar e constitui, do ponto de vista histórico, o início da introdução, em Moçambique, do sistema de administração executivo com um modo de resolução de litígios administrativos original através de um órgão específico – o tribunal administrativo – com regras processuais, por parte, distintas da Lei Processual Civil.


O surgimento do Contencioso Administrativo na Província Ultramarina e o seu desenvolvimento no Moçambique independente (1856-2000)

O facto colonial, numa vontade de assimilação institucional, introduzira nas suas colónias as instituições administrativas da metrópole e, mais particularmente, uma justiça administrativa teoricamente distinta da justiça civil. É na segunda parte do séc. XIX que Moçambique será o receptor deste modo original de resolução dos litígios administrativos.
Deste modo, o estudo da história do Contencioso Administrativo Moçambicano da segunda metade do séc. XIX até ao ano 2000 caracteriza-se por dois períodos distintos se for tido em consideração o critério da estabilidade das regras aplicáveis ao contencioso administrativo.
A primeira fase histórica inicia-se em 1856 terminando em 1933 com a aprovação da Reforma Administrativa Ultramarina. Este período caracteriza-se por uma instabilidade crónica em termos organizativo e de regras processuais que regulam o Contencioso Administrativo.
A segunda fase histórica inicia-se com a aprovação da referida Reforma Administrativa (1933) terminando com a grande Reforma de 2001. Este período é marcado pela estabilidade das regras processuais que regulam o Contencioso Administrativo em Moçambique.


Do nascimento da justiça administrativa à aprovação da Reforma Administrativa Ultramarina (1856-1933)

O nascimento de uma justiça administrativa (e por via de consequência, de um Contencioso Administrativo) em Moçambique, resulta da aprovação da Portaria Provincial n.º 395, de 18 de Fevereiro de 1856 (é o marco formal).
A referida Portaria vai mandar “considerar em vigor o Código Administrativo de 18 de Março de 1842, menos no que for contrário ao disposto nos artigos 5.º e 8.º do Decreto de 7 de Dezembro de 1836” (este diploma consagra, do ponto de vista do contencioso administrativo, um sistema de justiça reservada), e deste modo, introduzir, na província ultramarina, as novas regras relativas à organização administrativa, formação e atribuições dos corpos administrativos, magistrados administrativos, tribunais administrativos, administração paroquial, disposições especiais, gerais e penais.
Contudo, as circunstâncias peculiares dos territórios extra-europeus tornaram o Código Administrativo de 1842 inexequível. Daí as alterações que lhe foram introduzidas, quanto às províncias ultramarinas, pelo Decreto de 1 de Dezembro de 1869.
Do ponto de vista da história da Justiça Administrativa em Moçambique, o Decreto de 1 de Dezembro de 1869 tem uma posição peculiar porque é neste diploma que é mencionado, pela primeira vez, explicitamente, o termo “tribunal administrativo”.
Com efeito, a reforma administrativa instituída pelo Decreto de 1 de Dezembro de 1869 visava introduzir “uma prudente descentralização” de forma a dar um espaço mais amplo à iniciativa local, isto é, procurava o alargamento da esfera das atribuições das autoridades superiores da administração provincial e a concessão de uma ampla iniciativa às províncias no âmbito da prestação dos serviços públicos.
O Conselho de Província, na sua qualidade de tribunal administrativo, era composto exclusivamente por administradores e funcionários (nos termos do artigo 49.º do Decreto de 1 de Dezembro de 1869) e desenvolvia as atribuições estabelecidas pelo Código Administrativo de 1842 (nos termos do artigo 50.º do Decreto de 1 de Dezembro de 1869).
No início do séc. XX, o Decreto de 2 de Setembro de 1901 vem, por um lado, estabelecer uma competência de atribuição a favor do Supremo Tribunal Administrativo em matéria de recursos dos actos e decisões das autoridades administrativas das províncias ultramarinas, e por outro lado, regular, nas províncias ultramarinas, a forma do processo, a interposição e o seguimento de recursos para o Supremo Tribunal Administrativo.
Ainda no início do séc. XX, o Decreto de 23 de Maio de 1907 veio implementar uma reforma importante no domínio da “Reorganização administrativa da província de Moçambique”. Esta reforma procurou lutar contra uma centralização excessiva, sendo que teve consequências do ponto de vista do contencioso administrativo, no que concerne à composição e às competências do Conselho de Província (introduzindo alterações na sua composição e alargou as suas atribuições).
Contudo, esta reforma não conseguiu cumprir aquilo para o qual se propôs. A aprovação do Decreto n.º 164 de 14 de Outubro de 1913 demonstrou isso claramente. Este diploma, constituindo mais uma reforma, reorganizou os serviços do Conselho de Província de Moçambique com base em dois tipos de medidas: em primeiro lugar, procedeu a uma modificação da composição do Conselho de Província num duplo sentido: de se tornar o Conselho mais “judicial” (o processo de “judicialização” traduz-se no ingresso de “Todos os juízes da Relação de Moçambique” [nos termos do artigo 1.º, alínea a)] e “profissional” (o processo de “profissionalização” traduz-se no reforço do corpo administrativo ao seu serviço [nos termos dos artigos 4.º, 5.º e 6.º]); em segundo lugar, atribuiu “gratificações” aos juízes e vogais de forma a interessar melhor os seus membros no desempenho efectivo das funções atribuídas ao Conselho [nos termos do artigo 2.º]).
Em 1914, com a publicação da Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas) cessou o regime do Decreto de 1869 e do Código de 1842, o que levou “cada colónia a publicar a sua legislação administrativa”.
A colónia de Moçambique não foi excepção. No dia 28 de Janeiro de 1922, o Alto Comissário da República da Província de Moçambique, Manuel de Brito Camacho, promulga a Carta Orgânica da Província de Moçambique (constante do Decreto n.º 200, de 28 de Janeiro de 1922), consagrando esta, pela primeira vez, de uma forma explícita, num Capítulo individualizado (Capítulo VI), a instituição do Tribunal Administrativo (sendo que o Capítulo VI tem como objectivo racionalizar o funcionamento desta instituição).
A Carta Orgânica de 1922, no seu artigo 91.º, previa a publicação de um regimento especial pelo Governador em Conselho Executivo que regulará a ordem e forma de processo a seguir no Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas de Moçambique, fixará a respectiva tabela de emolumentos, custas e salários, e o quadro e vencimentos do pessoal da secretaria.
Este regimento é efectivamente publicado no Suplemento do Boletim Oficial de Moçambique n.º 29, de 26 de Julho de 1922, constituindo o primeiro estatuto privativo do Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas de Moçambique.
No que toca ao processo administrativo contencioso, o artigo 7.º do Regimento consagra o princípio fundamental de independência do Tribunal Administrativo em relação ao Poder Executivo no desempenho das suas atribuições. Esta independência marca uma etapa importante para a autonomia da jurisdição administrativa (mesmo permanecendo uma ligação orgânica entre o Tribunal Administrativo e a administração activa).
Além disso, o artigo salientado estabelece a regra fundamental segundo a qual “os seus Acórdãos têm um carácter e efeitos das decisões dos Tribunais de Justiça”. De jure, os Acórdãos do Tribunal Administrativo produzem efeitos processuais definidos pelo Código de Processo Civil.
Os processos e todos os documentos escritos submetidos ao conhecimento do Tribunal serão apreciados em “Secção” (Secção do Contencioso Administrativo, Secção do Contencioso Fiscal, Secção do Contencioso Aduaneiro, Secção de Contas).
O Contencioso Administrativo permanece um contencioso de “actos” e não de “actividades”. É o julgamento das “reclamações” e “recursos” que domina a actividade jurisdicional do Tribunal Administrativo de então.
Na verdade, o facto de cada colónia ter começado a publicar a sua própria legislação administrativa (que derivou da publicação da Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914 [Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas] que veio cessar o regime do Decreto de 1869 e do Código de 1842), juntamente com os diplomas metropolitanos comuns a todo o Ultramar, teve como consequência uma inconveniente dispersão legislativa. Por essa razão, o Governo central, usando da faculdade conferida pelo artigo 108.º da Constituição da República Portuguesa, aprovou por Decreto-Lei n.º 23.229, de 15 de Novembro de 1933, a Reforma Administrativa Ultramarina (em diante, RAU).


Da Reforma Administrativa Ultramarina à aprovação da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho (1933-2001)

A RAU entrou em vigor em todas as colónias portuguesas no dia 1 de Janeiro de 1934.
Além da riqueza da matéria tratada, a RAU consagra uma parte (Parte V – DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO) relativa à organização e ao regime do Contencioso Administrativo nas colónias.
Deste modo, no início dos anos 30 do século passado, os princípios e as regras fundamentais referentes ao regime do Contencioso Administrativo no Ultramar são estabelecidos, codificados e, consequentemente, aplicáveis na Província Ultramarina de Moçambique. Esses princípios estarão em vigor até à reforma realizada pela Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho (ou seja, esses princípios perdurarão mesmo depois da independência de Moçambique).
É ilustrativo da vigência e importância deste diploma legal como fonte principal do Contencioso Administrativo a análise dos fundamentos dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal Administrativo na área do Contencioso Administrativo (a título de exemplo, vide, ABEL AUGUSTO ZITA, de 27 de Dezembro de 1994, Proc. 21/94 – 1ª, JAM, I, p. 5).
Apesar da estabilidade da RAU, que permitiu o surgimento de uma jurisprudência administrativa uniforme, aquela não acompanhou as exigências ditadas pelo crescimento de uma jurisdição administrativa moderna, motor da consolidação de um Estado de Direito. A evolução recente da natureza do Contencioso Administrativo mais preocupada, tendencialmente, pela protecção dos direitos subjectivos públicos dos particulares, constituiu um factor determinante para uma reforma da RAU (realizada pela Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho).


O novo Contencioso Administrativo (2001-…)

A observação atenta do Direito Comparado demonstra que nos últimos vinte anos houve uma corrente convergente em termos de reformas do Contencioso Administrativo. Portugal, Espanha, França, Alemanha, Argentina, entre outros países, realizaram profundas reformas das normas contenciosas administrativas para responder às necessidades de evolução das formas de actuação da Administração Pública e do próprio relacionamento Administração/Administrado.
Na verdade, Moçambique não podia permanecer afastado desta corrente. Além do comando legal que impunha uma reforma legal nesta matéria (artigo 46.º da Lei n.º 5/92, de 6 de Maio), o direito colonial herdado não se adequava às novas realidades do país. A RAU apresentava dificuldades na sua aplicação, designadamente quanto à necessária celeridade processual e a melhor protecção dos direitos subjectivos dos administrados. Além disso, as profundas alterações às atribuições do Tribunal Administrativo, no contencioso administrativo, consagradas pela Lei n.º 5/92, de 6 de Maio, nomeadamente, a introdução de figuras e institutos jurídicos até então inexistentes no quadro legal, implicava uma imperiosa necessidade de se reformular o direito processual, de modo a que o direito substantivo fosse melhor agilizado ou servido.
Pelos motivos anteriormente salientados, uma reforma profunda era necessária. No princípio do ano de 1996, o Governo solicitou ao Tribunal Administrativo que estudasse a elaboração de um Ante-Projecto de Legislação Contenciosa Administrativa. O Presidente do Tribunal Administrativo, sensível a este interesse, decidiu constituir um Grupo de Trabalho encarregado de reflectir sobre os grandes eixos da reforma e de apresentar um Ante-Projecto de Reforma do Contencioso Administrativo. O referido Grupo de Trabalho elaborou a sua metodologia de trabalho e apresentou, em debate público, o resultado do seu trabalho. Por sua vez, o Governo aprovou o Projecto do Código de Contencioso Administrativo e a Assembleia da República aprovou a Lei sobre o Contencioso Administrativo (Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho).
Foi esta Lei que efectivamente realizou a profunda reforma do Contencioso Administrativo Moçambicano.

Bibliografia:
- VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», Almedina, Coimbra, 2009.
- MARCELO CAETANO, «Manual de Direito Administrativo», Volume I, Almedina, Coimbra, 2010.
- GILLES CISTAC, História do Direito Processual Administrativo Contencioso Moçambicano.

Francisco Monteiro da Silva, n.º 140106007

O recurso hierárquico necessário

O acórdão referente ao processo nº 0701 do STA vem levantar vem levantar uma questão bastante discutida na doutrina e jurisprudência: a efectiva necessidade do recurso hierárquico necessário.
A lei de processo dos tribunais administrativos começou por prever que os actos administrativos fossem definitivos e executórios, ou seja, actos que pondo termo a um procedimento admnistrativo, decidam autoritáriamente uma situação jurídica individual e concreta culminando nos planos horizontal, vertical e material.
Este regime sofreu um abalo com a revisão constitucional de 1989, que trouxe uma nova redacção ao art 284º nº4 da CRP, segundo a qual a recorribilidade já não dependia da definitividade dos actos, mas antes da sua efectiva lesão provocadas por estes.
Para a generalidade da doutrina e jurisprudência, esta alteração não significou a consagração do direito à imediata impugnação judicial dos actos lesivos, uma vez que é constiucionalmente admissível impor ao administrado o prévio esgotamento das vias administrativas (graciosas) como forma de acesso aos meios contenciosos.
Desta forma, e segundo o acórdão, a nova redacção deste artigo não veio alterar o "status quo" do regime vigente.
Acresce que o art 51º nº1 do CPTA fez com que se questionasse se todos os actos com eficácia externa poderiam ser imediata e judicialmente impugnáveis, que poderia por em causa a "necessidade" do recurso hierárquico necessário.
É do entendimento do Tribunal que este artigo coexiste em plena harmonia com impugnação administartiva necessária: quando a lei expressamente o disser e em todos os casos anteriores ao CPTA. De notar que esta airmação teve vários votos vencidos. Esta decisão é justificada pela não revogação das múltiplas disposições avulsas que obrigam ao recurso hierárquico necessário. A regra geral contida no art 61º será então, inaplicável sempre que houver determinação legal expressa (anterior ou posterior ao CPTA) que preveja a necessidade de impugnação administrativa como pressuposto da impugnação contenciosa.
Os professores Mário Aroso de Almeida e Veira de Andrade concordam com a posição deste acórdão, na medida em que o CPTA deixou de fazer quelquer referência ao requisito da definitividade e também nã contém nenhuma disposição equivalente ao art 34º da LPTA, que se referia às impugnações administrativas necessárias como pressuposto de impugnabilidade do actos administrativos.
Isto resulta também das soluções consagradas dos arts 51º e 59 nºs 4 e 5 do CPTA. No entanto, o CPTA não tem como objectivo revogar as múltiplas denominações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições essas que só poderiam desaparecer mediante disposião expressa que determinasse que todas elas deviam ser extintas.
Contráriamente à posição destes Professores, O Professor Vasco Pereira da Silva, que defende a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, refere que se a razão de ser do recurso hierárquico necessário era a de permitir a impugnação do acto administrativo e se agora se consagra sempre a possibilidade de impugnação contenciosa imediata da decisão admnistrativa, independentemente da via admnistrativa prévia e do respectivo efeito suspensivo, não faz sentido nenhum que se mantenha o recurso hierárquico necessário, tornando-se "desnecessário".
Relativamente ao argumento utilizado sobre a não revogação das "regras especiais" dos professores Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade, diz o Professor Vasco Pereira da Silva, de que se assim fosse, seria forçoso concluir que, antes da reforma, tais normas ditas "especiais" não possuiam especialidade alguma, já que eram apenas a confirmação, ou reiteração da "regra geral" da impugnação hierárquica necessária. Acresce que, agora o CPA estabelece que a garantia prévia não é mais um pressuposto processual, ou seja, a exigência do recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que se deve considerar que, pelo menos nessa parte, tais normas caducam pelo desparecimento das circunstâncias que as justificavam.

Desta forma torna-se desnecessário continuar a existir uma garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser um pressuposto de impugnação dos actos administrativos. Nesta medida, não concordamos com a decisão proferida pelo STA. Ume vez que segundo os termos do art 59 nºs 4 e 5, pode haver impugnação contenciosa durante a pendência de impugnação graciosa, isto traduz-se numa desnecessidade do recurso hierárquico necessário.


Filipa Rito
[140106036]

Processos Urgentes

Entre a Acção Administrativa e a Tutela Cautelar

- Em especial, a Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias -

A) Os Processos Urgentes

Uma inovação do direito português, os processos urgentes apresentam-se como um tertio género na tutela de direitos pelo Contencioso Administrativo. Aqui, estamos perante um meio de tutela de direitos, onde a relação jurídica controvertida, pela sua natureza, exige uma conformação definitiva (tal como acontece nas acções administrativas comuns e especiais) e especialmente rápida, ou seja, urgente (característica típica dos processos cautelares) do litígio.

A existência destes meios processuais prende-se, assim, uma necessidade urgente de uma decisão de fundo da causa, donde se distingue da tutela cautelar. Neste meio processual pretende-se uma decisão que acautele o fim útil da decisão jurisdicional, mas não a decisão do litígio em si, enquanto nos processos urgentes se vai assistir à definição do direito.

Esta mesma urgência traduz-se numa tramitação processual simplificada face às acções administrativas, quer em termos de prazos para a prática de actos processuais, prazos para decisão jurisdicional, como limitações nos actos a serem executados (Cfr. Título IV com as disposições do Capitulo III do Título III do CPTA). Esta simplificação e celeridade estendem-se aos prazos para recurso das decisões no processo urgente (Cfr. art.º 147.º por remissão do artigo 36.º do CPTA).

Sob o Título IV, “Dos Processos Urgentes”, encontramos a regulação de algumas destas figuras, enquanto impugnações urgentes, isto é, processos que se assemelham a acções administrativas especiais urgentes de acordo com Mário Aroso de Almeida, ou intimações, que consubstanciam uma imposição comparável, com as devidas limitações, à existente na acção de condenação na prática de acto devido. São estes processos a impugnação urgente em contencioso eleitoral ou em contencioso pré-contratual, e a intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, ou para a protecção de direitos, liberdades e garantias.

Todavia, estas figuras especialmente reguladas no CPTA não exauram todas as situações em que a lei admite a existência de um processo urgente, de acordo com o disposto no número 1 do artigo 36.º do CPTA – a exemplo, a intimação para prática de acto legalmente devido ao abrigo do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (Cfr. art.º 112.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 1 de Agosto).

Com a Reforma do Contencioso Administrativo em 2004 estas figuras foram resgatadas da legislação anterior, todavia, o seu tratamento foi algo negligenciado, mantendo-se em larga medida a regulação nos termos da legislação anterior, o que pode suscitar algumas questões. Assim, salienta-se a necessidade de corrigir a interpretação de algumas disposições em função dos princípios gerais do CPTA (princípio da tutela de plena jurisdição ou o fim da definitividade do acto como pressuposto processual), ou, até, a necessidade de conviver com desconformidades ilógicas e insanáveis (Cfr. n.º 1 do art.º 100.º com o art.º 37.º do CPTA e as alíneas b., e., e f., do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF).

Porém, em 2004, criou-se uma figura nova – a Intimação para a Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias (art.º 109.º e ss. do CPTA). Deste processo trataremos em especial.

B) Intimação para a Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias

Este processo, uma inovação em 2004, surge por influência das legislações latinas, nomeadamente a Lei n.º 29/1998, de 14 de Julho, que regula o contencioso administrativo espanhol e introduziu el procedimiento especial para la protección de los derechos fundamentales de la persona, e a Lei n.º 2000-597, que reformou o contencioso administrativo francês e introduziu a figura do référé-liberté.

O contencioso espanhol, desde 1978 e ainda que com carácter provisório, dispõe de um mecanismo para proteger os direitos fundamentais, que assenta em premissas de urgência e simplificação na tramitação processual, características que este procedimento partilha com a nossa intimação. Discute-se, todavia, se o seu âmbito se restringe ao estrito conhecimento do acto lesivo de direitos fundamentais ou se deve-se entender que pode conhecer também das questões conexas com o conteúdo do direito fundamental.

Por sua vez, o contencioso francês criou um processo urgente para tutelar liberdades fundamentais face a lesões graves e manifestamente ilegais numa situação de urgência. Aqui discute-se se este é um mecanismo que visa apenas assegurar uma tutela provisória da situação, devendo, como tal, abstrair-se de afectar questões que respeitariam a um processo principal, ou se, todavia, é já um verdadeiro processo principal onde o juiz pode decidir definitivamente a questão.

No direito português, a intimação para tutela de direitos fundamentais ultrapassou estes dois problemas, na medida em que estamos perante um processo que visa a definição final da relação controvertida, tendo em atenção que, para esta definição final, há-de o tribunal conhecer de todas as questões conexas com o conteúdo do direito fundamental.

Surgiram, todavia, outras questões, nomeadamente, a necessidade de definir o âmbito dos direitos a serem tutelados por este processo urgente. Assim, três posições têm sido defendidas na doutrina nacional:

- Restritiva: a menção a direitos, liberdades e garantias deve ser entendida restritivamente como reportando-se exclusivamente àqueles que respeitam a direitos de natureza pessoal. Esta interpretação visa estender a aplicação do número 5 do artigo 20.º da CRP ao contencioso administrativo

Esta posição, contudo e para Vasco Pereira da Silva, não é de se aceitar uma vez que a referida norma constitucional estipula apenas um mínimo constitucional, sobre o qual o legislador ordinário tem liberdade para dispor.

- Literalista: a menção estrita a direitos, liberdades e garantias traduz a vontade do legislador em excluir do seu âmbito os direitos económicos, sociais e culturais.

Para o referido autor, esta interpretação esquece o disposto no artigo 17.º da CRP, que cria uma noção ampla e uma cláusula aberta de direitos fundamentais, bem como estende o seu regime aos direitos de natureza análoga. Por sua vez, e para este autor, não se está aqui perante um problema de analogia, mas sim de identidade entre direitos: tanto os direitos, liberdades e garantias como os direitos económicos, sociais e culturais são idênticos na sua dimensão de direitos subjectivos, distinguindo-se apenas na sua dimensão objectiva, enquanto metas para a Administração, pelo que tal distinção não tem razão de ser em termos processuais.

- Ampla: estamos perante uma intimação para tutela também de direitos económicos, sociais e culturais.

Esta é a interpretação que os tribunais administrativos têm vindo a aceitar, construindo uma figura que pode vir a ter especial relevância em termos de Direito ao Ambiente e à Saúde, entre outros.

Para além das dificuldades na definição do âmbito deste mecanismo, coloca-se a questão de saber quando se pode recorrer a este processo urgente, nomeadamente se confrontado com a existência de um mecanismo cautelar com um âmbito de aplicação muito próximo, o decretamento provisório de providência (Cfr. art.º 131.º e n.º 1 do art.º 109º in fine do CPTA).

Assim, este processo pode ser utilizado para fazer frente à violação de direitos fundamentais que exige uma resposta útil na medida em que esta violação se esgota no tempo, em razão da sua imediaticidade, mas também quando o processo cautelar não se afigura suficiente. Estamos perante o que Ana Sofia Firmino, apresenta como uma das duas “condições de deferimento da intimação”:

- Subsidiariedade da intimação face ao recurso à tutela cautelar: será de recorrer ao processo urgente apenas quando não exista qualquer outro processo que tutele especificamente e de forma mais eficaz a situação em apreço e independentemente da jurisdição a que se reporta (como defende a referida autora seguido a orientação proposta por Carla Amado Gomes), e quando este recurso se revele impossível ou insuficiente para acautelar a situação em apreço, entendidos estes requisitos como a necessidade ou não de uma decisão que exige uma composição definitiva versando sobre o fundo da causa, sendo relevante, neste juízo, o factor tempo e a imediaticidade da decisão lesiva.

Crê-mos, todavia, tendo em atenção o teor literal do número 1 do artigo 109.º que refere expressamente a subsidiariedade por referência ao decretamento provisório de providência, é de certa forma difícil estender a subsidiariedade face a todos os mecanismos de providência cautelar previstos no sistema jurídico. Por outro lado, e nosso entender, esta dificuldade resultará acentuada pelos moldes em que se definem o âmbito das várias jurisdições, numa lógica de exclusividade ou subsidiariedade sobre matérias, daí que, estando em causa a lesão de direitos fundamentais no seio de uma relação administrativa esta subsidiariedade deve ser aferida em relação aos meios cautelares fornecidos por esta jurisdição.

- Indispensabilidade da intimação para assegurar o exercício útil do direito fundamental: esta condição, referida na doutrina (em especial Carla Amado Gomes) e recebida pela jurisprudência, vem trazer para os processos urgentes a necessidade de, à semelhança da tutela cautelar, o tribunal dever estabelecer um juízo de ponderação entre os vários bens e interesses em causa em face de uma situação de absoluta necessidade da intimação para poder exercer o seu direito. Este é, naturalmente, um juízo casuístico adequado à vinculação da Administração ao princípio da proporcionalidade nas decisões que afectem direitos subjectivos dos particulares (Cfr. número 3 do artigo 5.º do CPA).

Também no que concerne à legitimidade para requerer esta intimação se exigem algumas ressalvas. Assim, não dispondo os artigos 109.º e seguintes sobre este pressuposto, será de aplicar o regime geral do artigo 9.º do CPTA. Assim, terão legitimidade qualquer pessoa singular ou colectiva que se veja afectada num seu direito fundamental. Já a acção pública deve ser entendida em termos limitados e recusar-se liminarmente a acção popular, uma vez que este processo, ao exigir a impossibilidade de exercício de um direito, se apresenta como exclusivamente subjectivista. Por outro lado, é inegável que as próprias pessoas colectivas públicas têm legitimidade para requerer esta intimação para defesa de um direito fundamental que lhes assista enquanto tal.

Quanto à tramitação deste processo urgente há a salientar a possibilidade de vários modelos de tramitação fruto do binómio urgência da decisão e complexidade da decisão, que se traduzem em prazos diversos e actos diversos (Cfr. art.º 110.º e 111.º do CPTA).

Por último, devemos assinalar a especial força deste processo urgente que admite, no número 3 do artigo 109º do CPTA, a possibilidade de o tribunal emitir sentenças substitutivas.

Bibliografia Utilizada:

Apontamentos das Aulas de Contencioso Administrativo leccionadas pelo Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva à Licenciatura em Direito na Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – 2010/2011.

ALMEIDA, Mário Aroso. 2010. Manual de Processo Administrativo. Coimbra: Edições Almedina.

FIRMINO, Ana Sofia. 2005. A Intimação para a Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias In SILVA, V. P. (Coord.), Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo – Estudos sobre a reforma do processo administrativo. Lisboa: AAFDL.

Cristina Miranda - 140107042