sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Nova Interacção entre Garantias Administrativas e Contenciosas no Novo Advento do Processo Administrativo

O novo processo administrativo consagra a regra da impugnabilidade dos actos administrativos em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares, afastando expressamente qualquer exigência de recurso hierárquico necessário – art. 51º,nº1 CPA.
Ora torna-se necessário compatibilizar esta norma com as normas do procedimento relativas às garantias administrativas.
O facto de se exigir um prévio esgotamento das garantias administrativas como condição necessária de acesso aos tribunais constituía umas das manifestações do “trauma de infância” do contencioso, como resquício do tempo do administrador – juiz.
O Prof. Vasco Pereira da Silva desde sempre defendeu a inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário com base nos seguintes argumentos:
1. Equivale a uma verdadeira negação do direito fundamental de recurso contencioso.
2. Princípio constitucional da separação entre a administração e a justiça – arts. 114º, 205º e ss, 266º e ss da CRP.
3. Princípio da desconcentração administrativa – art.267º, nº2 CRP – que implica a imediata impugnabilidade dos actos dos subalternos, sempre que lesivos.
4. Princípio da efectividade da tutela – art. 268º, nº4 CRP. Ao fazermos depender o recurso contencioso do prévio recurso hierárquico necessário, estaríamos a sujeitar o prazo de impugnação dos actos administrativos a um prazo muito curto de 30 dias, que corresponde ao prazo de que o particular dispõe para recorrer ao mecanismo do recurso hierárquico. Ora isto, em última análise, pode equivaler a uma inutilização prática do exercício do direito que podemos equiparar a uma lesão do próprio conteúdo essencial do direito.
O Legislador da reforma veio afastar de modo expresso e inequívoco a necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça administrativa, ou seja, como pressuposto de impugnação contenciosa. Podemos chegar a esta conclusão através das seguintes disposições:
1. Consagrou-se a impugnabilidade contenciosa de todos os actos que sejam susceptíveis de lesar direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares ou que sejam dotados de eficácia externa – art. 51º CPA. Uma vez que os actos dos subalternos, assim como o dos superiores hierárquicos, podem preencher estas condições deve ser possível a sua impugnação autónoma. Dado que o CPA não contém nenhuma norma que imponha a prévia interposição de uma garantia administrativa para uso de meios contenciosos, esta exigência deve ser entendida como afastada pela legislação contenciosa. O mesmo se diga quanto a normas do Cód. Procedimento Administrativo que regulem o recurso hierárquico necessário e qualquer lei avulsa que imponha o prévio recurso hierárquico ou outra qualquer garantia administrativa.
2. A utilização das garantias administrativas passa a ter um efeito suspensivo sobre o prazo de impugnação contenciosa dos actos – art. 59º, nº4 CPA. Isto atribui mais eficácia ao uso das garantias administrativas, uma vez que o particular que a elas recorrer sabe que a possibilidade de impugnação contenciosa está salvaguardada dado que o seu prazo só começa a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação. Isto torna o recurso hierárquico e as demais garantias realmente úteis.
Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva o legislador poderia ter ido mais além, consagrando não só a suspensão do prazo para impugnação contenciosa mas também a própria execução da decisão administrativa, generalizando o regime jurídico que se encontra previsto para o recurso hierárquico às demais garantias administrativas (ver art. 170º, nº1 Cód. Procedimento Administrativo).
3. Regra segundo a qual, mesmo em casos em que o particular opte por utilizar previamente uma garantia administrativa e beneficiou da suspensão do prazo de impugnação contenciosa, isso não impeça a imediata impugnação contenciosa do acto administrativo – art. 59º, nº5 CPA. Isto apaga a necessidade tanto do recurso hierárquico como de qualquer outra garantia administrativa no duplo sentido de não mais ser necessária a sua prévia utilização para aceder ao contencioso e de não mais ser necessário esperar pelo resultado da reapreciação administrativa, nos casos em que o particular opte por utilizar antecipadamente a via administrativa, para que possa impugnar contenciosamente o acto administrativo.
Isto transforma todas as garantias administrativas em facultativas.
Tende agora a surgir uma interpretação restritiva deste regime jurídico que entende que o que existe é uma revogação da regra geral da existência de recurso hierárquico necessário constante do Cód. Procedimento Administrativo e não uma revogação de eventuais regras especiais que consagrassem tal exigência, nem que se tenha afastado a possibilidade de estabelecimento de similares exigências em leis especiais.
Mário Aroso de Almeida entende que, para que estas disposições avulsas se possam entender revogadas, teria de existir uma disposição expressa que determinasse que todas elas se consideram extintas. Sendo assim, este autor entende que os actos administrativos que tenham eficácia externa são imediatamente impugnáveis nos tribunais, sem necessidade de prévia utilização das garantias administrativas mas quanto às decisões administrativas estas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isto esteja previamente previsto na lei.
O Prof. Vasco Pereira da Silva discorda desta perspectiva pelas seguintes razões:
1. Não é possível compatibilizar a regra geral da admissibilidade do acesso à justiça sem necessidade de prévio recurso às garantias administrativas com as regras especiais que supostamente mantenham tal exigência. Para o Prof. Vasco Pereira da Silva admitir a posição de Mário Aroso de Almeida equivale a criar uma nova categoria conceptual – a do “recurso hierárquico necessário desnecessário”.
2. Não podemos recorrer a argumentos formais para justificar a dualidade de regimes de impugnação de actos administrativos pois levam a conclusões que são infundadas. Admitir que as regras especiais prevalecem ainda que a regra do recurso hierárquico necessário do Cód. Procedimento Administrativo tenha sido revogada é retirar o próprio carácter especial a essas leis, o que quer dizer que mesmo antes da alteração operada pelo novo CPA essas normas não tinham especialidade alguma e eram apenas confirmações da regra geral da impugnação hierárquica necessária.
3. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva a partir do momento em que o CPA prevê o acesso directo ao juiz sem qualquer condição previa de utilização de vias administrativas todas as normas que prevêem a utilização prévia das garantias administrativas caducam por falta de objecto, isto é, uma vez que a razão de ser da exigência de recurso hierárquico necessário era permitir o acesso ao juiz e se o novo CPA não exige que se estabeleça essa garantia prévia, então isso só pode significar que a exigência de recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que devemos considerar que essas normas caducam pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que a justificavam.
E segundo Vasco Pereira da Silva esta caducidade por falta de objecto cumula-se com a caducidade operada pela inconstitucionalidade decorrente da exigência de recurso hierárquico necessário.
4. É muito difícil sustentar um contencioso “privativo” de certas categorias de actos administrativos que viria a ser forçosamente criado se entendermos que estas leis especiais avulsas continuam a vigorar mesmo após as alterações ao CPA. Isso levaria a uma ressurreição da ultrapassada categoria das “relações especiais de poder” mas ao nível do contencioso administrativo. Isso levaria a uma violação do princípio constitucional da Igualdade dos particulares perante a Administração pois cria “privilégios de foro” para certas categorias de actos administrativos.
5. O CPA estabelece um princípio de “promoção do acesso à justiça” – art. 7º - que determina que o mérito deve prevalecer sobre as formalidades, o que implica a regra segundo a qual devem ser evitadas “diligências inúteis” – art. 8º, nº2 do CPA. Este princípio vem concretizar o direito fundamental de acesso ao contencioso administrativo – art. 268º, nº4 CRP. Sendo assim, se a prévia utilização das garantias administrativas deixou de ser pressuposto processual então o recurso imperativo a estas é inútil e despropositado, o que consubstancia a ilegalidade e inconstitucionalidade de qualquer disposição que os estabeleça de modo obrigatório.
Sendo assim é fundamental que o legislador proceda à harmonização das disposições do Cód. Procedimento Administrativo e demais legislação avulsa que estabelece ainda a distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo com o novo regime processual e com a Constituição.
Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva a melhor maneira de proceder a esta harmonização passa pela revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário por uma questão de segurança e certeza jurídicas, ao mesmo tempo que se procedesse à generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas eventualmente acompanhada da fixação de um prazo curto para exercício da faculdade de impugnação administrativa pelos particulares que não teria qualquer relevância para a questão da impugnabilidade do acto administrativo mas que interessaria apenas para a aplicação do regime de suspensão automática da eficácia, até à decisão da garantia administrativa.
Esta solução permitiria satisfazer todos os interesses em questão:
1. O particular passava a ter estímulo acrescido para utilizar a via administrativa dado o efeito suspensivo automático o acto administrativo, sem nunca ver prejudicado nem precludido o seu direito de acesso ao tribunal.
2. A Administração que passaria a gozar em termos mais alargados de uma segunda oportunidade para cumprir a legalidade e realizar o interesse público, podendo também, sendo caso disso, satisfazer desde logo as pretensões do particular e pôr termo ao litígio.
3. O do bom funcionamento do sistema administrativo pois o bom funcionamento das garantias administrativas pode servir de filtro a litígios susceptíveis de ser preventivamente resolvidos.
Perguntamos agora: se o recurso hierárquico não é mais necessário para efeitos contenciosos o que acontece à normas de procedimento que prevêem a suspensão da eficácia dos actos administrativos submetidos a essa via graciosa antes considerada necessária? (art. 170º Cód. Procedimento Administrativo)
Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, enquanto o legislador não intervir no procedimento devemos considerar que o particular lesado por um acto administrativo de um subalterno, que preenchesse a previsão do anterior recurso hierárquico necessário pode optar por uma de três vias:
1. Intentar logo a acção administrativa especial, acompanhada ou não do pedido de providência cautelar de suspensão de eficácia do acto, optando assim pela via judicial para a resolução do litígio.
2. Proceder à prévia impugnação hierárquica que, para além do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso deve continuar a gozar de efeito suspensivo da execução do acto e só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utilizar ou não a via contenciosa.
3. Impugnar hierarquicamente a decisão administrativa que goza do referido efeito de suspensão da eficácia, mas tendo ainda a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem ter a necessidade de esperar pela decisão do superior hierárquico.

Bibliografia:
Novas e velhas andanças do contencioso administrativo – estudos sobre a reforma do processo administrativo – aafdl - Lisboa 2005.
Joana Cristina Baeta Vieira - 140107103

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