quinta-feira, 25 de novembro de 2010

“ Um problema chamado contencioso da responsabilidade civil da Administração pública em Portugal”

Em Portugal o problema da responsabilidade civil da administração surge-nos como um verdadeiro pilar do Estado de Direito encontrando expressão constitucional nos artigos 22º, 16º, 17º da Constituição Portuguesa.
   Neste domínio, poderá salientar-se a existência de três momentos marcados por três leis que surgiram numa tentativa de resolver os “traumas difíceis” da responsabilidade civil pública, e dos quais tentarei explicar de um modo geral partindo de três momentos referenciados.
    
Num primeiro momento, vigorou um sistema de responsabilidade civil pública inicialmente introduzido pelo decreto-lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967. Este decreto assentava fundamentalmente na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada. Entendendo-se por acto de gestão pública aqueles praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção. E acto de gestão privada, como sendo os actos praticados pelos órgãos ou agentes da Administração Pública com posição de paridade com o particular a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado.
    Na lógica deste sistema, necessário era qualificar-se, num primeiro momento, o acto ou facto causador do prejuízo pela administração, para num momento posterior ver se aquele corresponderia ou não a uma actuação dita de gestão pública ou privada. E dependendo dessa análise, aplicar-se-iam as regras de direito civil ou as regras da administração consoante os casos (o que em termos práticos equivaleria dizer que os tribunais judiciais seriam mister na competência das matérias, sempre que o acto fosse qualificado como acto de gestão privada. Já se o acto fosse de gestão pública, a questão seria de imediato remetida para os tribunais Administrativos).
    Atendendo à componente substancial do decreto, o sistema de responsabilidade era composto por duas jurisdições em função da actividade administrativa em causa. Pois existiam dois tribunais; o tribunal Judicial e o tribunal Administrativo. Assim, um qualquer particular que tivesse sofrido danos (materiais ou pessoais) causados no desempenho de actividades de Gestão Privada, a Administração Pública responderia pelas regras do direito civil e perante os Tribunais Judiciais. Se, pelo contrário, o particular sofresse danos causados no exercício de actividades de Gestão Pública, a Administração responderia ao abrigo das normas do direito Administrativo, respondendo perante os tribunais Administrativos.
   Analisando criticamente este sistema, não faz algum sentido atender à lógica da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, porque independentemente das formas de actuação da administração (seja acto de gestão pública ou privada) elas têm sempre em comum a satisfação das necessidades colectivas.
    Além disso, este sistema conduziria na prática a um potencial conflito negativo ou positivo de jurisdições entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, que se arrogavam ambos incompetentes ou competentes num certo e determinado litígio em causa.
    Assim, é totalmente irrelevante do ponto de vista da actuação da Administração saber se esta actua ou deixa de actuar segundo uma gestão pública. Pelo que se pode dizer que o sistema foi nesse sentido “esquizofrénico”.

Num segundo momento, com a reforma do contencioso em 2004, o ETAF passou a consagrar a unidade jurisdicional da responsabilidade civil da Administração Pública (conferir o número 1 do artigo 4º al.g) h) i) do ETAF). O legislador decidiu abandonar o critério ilógico assente na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada que relevava para efeitos da determinação da competência do tribunal. Neste domínio, toda a responsabilidade civil pública passa a ser da competência exclusiva dos tribunais administrativos (por danos resultantes do exercício da função administrativa, politica e legislativa) ao abrigo do número 1 do artigo 4º al.g) do ETAF e número 3 do artigo 212º da Constituição portuguesa.
    Todavia, apesar desta consagração da unidade jurisdicional, o legislador teimava na continuação de uma dualidade de regimes, o que era altamente desfavorável para o particular lesado que se encontrava numa situação de incerteza quanto a saber qual o tribunal a recorrer, e mais uma vez se mantinha a forte probabilidade de se vir a potenciar conflitos negativos de jurisdição entre os próprios tribunais. Salienta-se que o número 1 da al.g) do artigo 4º do ETAF foi objecto de três interpretações doutrinárias, a salientar:
1)  Visão restritiva do preceito: Defesa da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada;
2)  Visão ampla do preceito: Substituição do critério ilógico da distinção entre os actos para se introduzir o critério da natureza da relação (cfr. 212º/3 da CRP + 1º/1 ETAF).
3)  Visão subjectiva do preceito: Qualificação como administrativos os litígios dirigidos contra a Administração Pública. Ou seja, só quando a Administração Pública configura a posição de ré é que os tribunais seriam competentes.


Num terceiro e último momento, salienta-se que ao fim de tantos anos e de várias tentativas goradas, surge o novo regime de responsabilidade civil pública plasmado no diploma 67/2007, de 31 de Dezembro, mas que ainda assim ficou muito aquém das expectativas.
    Este diploma aplica-se aos danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa (cfr. art 1º/1 do diploma). No entanto, onde se pretendia um regime que pusesse fim à dualidade legislativa, e à ilógica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, temos agora mais um trauma a ter de ultrapassar, e que agora se prende com a ambiguidade linguística do artigo 1º/1, do qual se passa a citar “ correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou regulado por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Como não é de estranhar, a doutrina não é líquida quanto à aplicação deste preceito, e portanto gerou-se graus diferentes de interpretação deste artigo.
    Actualmente a jurisprudência e alguma doutrina têm defendido que a expressão “ prerrogativas de poder público” continua a ter presente o velho “ resquício” da distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.
    Contrariamente a tal posição, insurge-se o professor Vasco Pereira da Silva defendendo a ideia de que a expressão “ prerrogativas do poder público” surge, neste contexto, como uma alternativa à expressão “ regulação por normas ou princípios de direito Administrativo”. Esta última expressão seria tida como expressão mais ampla ou genérica, e como tal, capaz de integrar em si as tais “prerrogativas do poder público” que seriam expressão mais concreta e individual.
   Assim, o regime da responsabilidade da Administração Pública seria tanto aplicável às actuações e omissões em que haja poderes de autoridade como às demais actuações que caibam ainda dentro da função administrativa que passam a ser reguladas por “ normas ou princípios de direito administrativo”. Ou seja, são as próprias normas ou princípios de direito administrativo que devem não só ter em conta as actuações de gestão pública como também as próprias actuações de gestão privada da Administração ( cfr ainda artigo 2º/5 do CPA).


Bibliografia:
SILVA, Vasco Pereira da, "O contencioso administrativo no divã da psicanálise", Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009



Cátia Silva
140107106

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