sábado, 23 de outubro de 2010

Comparação dos sistemas Anglo-Saxónico e Francês da Justiça Administrativa

O estudo dos sistemas administrativos consiste na tipificação dos diferentes modos de estruturação da Administração Pública, visto que o modo jurídico de organização, funcionamento e controlo da Administração foram mudando consoante a época e o pais.

Historicamente, faz-se a divisão entre o sistema tradicional (que vigorou na Europa até aos séculos XVII e XVIII) e os sistemas modernos que se implantaram posteriormente. Para o que aqui nos interessa, iremos referenciar o sistema tradicional, o sistema britânico (ou sistema de administração judiciária) e o sistema francês (ou de administração executiva).

1. Sistema Administrativo Tradicional

O sistema administrativo tradicional corresponde ao sistema administrativo da Monarquia tradicional europeia e assenta em duas características fundamentais: por um lado, a indiferenciação das funções administrativa e jurisdicional – o que resultava na inexistência de uma separação de poderes – e, por outro lado, não existia subordinação da Administração Pública ao princípio da legalidade, resultando num sistema com insuficientes garantias dos particulares face à Administração e, consequentemente, na inexistência de Estado de Direito.

O Rei era supremo administrador e juiz ao mesmo tempo: exercia quer a função administrativa, quer a função judicial, e esta confusão destes dois poderes estendia-se também às outras autoridades públicas (os conselhos do rei, as câmaras municipais, etc.) Não existia uma separação de poderes, mas uma verdadeira confusão entre o poder executivo e o poder judicial.

As regras que existiam não constituíam um sistema, tratando-se de regras avulsas que podiam ser afastadas por utilidade politica ou conveniência pública e, em último caso, o monarca tinha no seu poder a possibilidade de dispensar quem entendesse de certos deveres, podendo atribuir-lhes privilégios. Não existia Estado de Direito, uma vez que as normas que vinculavam a Administração Pública eram maioritariamente relativas às relações entre os funcionários subalternos e os respectivos superiores hierárquicos. As normas não revestiam, na maioria das vezes, carácter obrigatório externo, ou seja, não conferiam quaisquer direitos aos particulares, face à Administração.

Esta situação foi vivida na Europa até ao final do período do absolutismo e veio a sofrer alterações profundas com as Revoluções que ocorreram em Inglaterra (1688) e em França (1789). Com estas revoluções, estabeleceram-se os sistemas administrativos modernos, que se baseavam na separação de poderes (os poderes do Rei foram divididos e atribuídos a órgãos distintos) e no Estado de Direito (proclamaram-se os direitos do homem como direitos naturais anteriores e superiores aos do Estado ou do poder politico).

2. Sistema Administrativo Britânico – Administração Judiciária

Com a separação de poderes, o Rei deixou de poder decidir sobre questões de natureza contenciosa (lei de abolição da Star Chamber -1641) e foi proibido de dar ordens a juízes e ainda de transferir ou demitir os mesmos (Act of Settlement – 1701).

Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos britânicos foram consagrados na Bill of Rights (1689), onde também ficou determinado que o direito comum seria aplicável a todos os ingleses, fossem eles o Rei ou súbditos – consagrava-se, assim, o império do direito (Rule of Law).

Existia uma descentralização do poder em Inglaterra, distinguindo-se a administração central (central government) da administração local (local gorvernment). Estas autarquias locais foram sempre vistas como entidades independente e não como meras representantes do poder central, eram verdadeiros governos locais. Para reforçar esta ideia de autonomia, em Inglaterra não havia delegados gerais do poder central nas circunscrições locais (como existiu em França o “prefeito”).

A Administração Pública está sujeita ao controlo jurisdicional dos tribunais comuns porque ninguém pode invocar privilégios ou imunidades, uma vez que só há um sistema aplicável, quer ao Estado, quer aos particulares. Os tribunais aplicam os mesmos meios processuais às relações dos particulares entre si e às relações da Administração com os particulares, não havendo que procurar soluções para a Administração que sejam diferentes das soluções da vida privada.

A Administração Pública está subordinada ao direito comum, como consequência do Rule of Law, ou seja, o Rei, os seus conselheiros e funcionários regem-se pelo mesmo direito que todos os cidadãos comuns. Por regra, os órgãos e agentes da Administração Pública não dispõem de privilégios ou prerrogativas da autoridade pública e qualquer poder de decisão unilateral que lhes seja confiado por lei unilateral será sempre visto como uma excepção ao princípio geral do rule of law e não como parte de um sistema de direito administrativo.

As decisões unilaterais da Administração não têm em princípio força executória própria, ou seja, não podem ser impostas pela coacção aos particulares sem uma prévia intervenção do poder judicial. Isto significa dizer que se um órgão da Administração Pública tomar uma decisão desfavorável a um particular e este não a cumprir voluntariamente, o órgão administrativo não poderá agir coactivamente, terá que recorrer a tribunal de forma a obter uma decisão que torne aquele acto imperativo.

Os particulares cujos direitos tenham sido violados pode recorrer aos tribunais, solicitando um mandado ou uma ordem do tribunal à autoridade administrativa para pratique ou se abstenha de praticar determinada acção. Desta forma, os particulares têm um sistema de garantias que os protege da ilegalidade ou abuso da Administração Pública. Como os tribunais comuns gozam de plena jurisdição face à Administração, podem anular qualquer uma das suas decisões, bem como ordenar à Administração o cumprimento da lei, quer pela acção, quer pela omissão de determinados comportamentos. Trata-se de uma ordem que será cumprida por qualquer órgão ou agente da Administração Pública e a sua desobediência dá lugar à prisão.

3. Sistema Administrativo Francês – Administração Executiva

Com a Revolução Francesa foi expressamente proclamado o princípio da separação de poderes, o que resultou na separação da Administração e da Justiça, divida por órgãos diferentes.

Enunciaram-se os direitos subjectivos públicos que o particular apresentava face ao Estado.

O poder administrativo apresenta a característica da centralização, uma vez que se pretendiam implementar todas as reformas politicas, económicas e sociais, impondo novas ideias e combatendo muitas resistências. Desta forma, organizou-se um sistema baseado na hierarquia: o território francês seria dividido em departamentos chefiados por prefeitos, os municípios não apresentam autonomia administrativa e financeira, ou seja, as autarquias locais eram meros instrumentos administrativos do poder central.

Antes da Revolução, os tribunais comuns confrontavam várias vezes a autoridade real e mantiveram-se resistentes à implementação do novo regime, o que fez com que o poder politico adoptasse meios que impedissem intromissões do poder judicial no normal funcionamento do poder executivo. É aqui que nasce a promiscuidade entre a Administração e a Justiça, visto que se vai fazer uma interpretação diferente do princípio da separação de poderes: cria-se a proibição de os juízes conhecerem dos litígios contra as autoridades administrativas, e chega-se a criar tribunais administrativos que era, na realidade, órgãos da Administração Pública com a função de fiscalizar os próprios actos da Administração e o contencioso dos seus contratos e responsabilidade civil.

A tradicional distinção, nos países de família romano-germânica, entre direito público e direito privado permitiu a criação de um novo ramo do direito público – o Direito Administrativo. Caracteriza-se, nesta altura, por atribuir à Administração Pública poderes de autoridade de que os particulares não dispõem, uma vez que a Administração prossegue o interesse público e satisfaz necessidades colectivas, o que justifica determinados privilégios e mesmo imunidades pessoais que possam assegurar aqueles objectivos. A criação desta posição de superioridade da Administração tinha o seu fundamento na necessidade de impor as suas decisões aos particulares que se pudessem opor ao interesse geral, mas também apresentava uma submissão da Administração a especiais deveres e restrições, porque o seu comportamento estaria destinado à prossecução do interesse público.

Na prática, o direito administrativo acabou por conferir à Administração Pública um catálogo de poderes exorbitantes sobre os cidadãos, comparativamente às relações que estes mantinham entre si. Prova disso era a possibilidade da Administração poder executar as suas decisões por autoridade própria, aquilo que foi considerado o privilégio de execução prévia. Os órgãos administrativos, perante um incumprimento por parte de um particular de uma decisão administrativa que lhe fosse desfavorável, podiam por si só empregar meios coactivos que impusessem o respeito pela sua decisão, sem necessidade de obter de um tribunal autorização para tal. Tudo isto significa dizer que as decisões da Administração tinham força executória própria, sem qualquer necessidade de recurso aos meios judiciais.

O conjunto de garantias que eram oferecidas aos particulares não eram efectivadas através dos tribunais comuns mas sim através dos tribunais administrativos, o que significa que a Administração julgava os casos em que os particulares alegavam os seus direitos contra ilegalidades ou até abusos pela parte de órgãos administrativos. Os tribunais comuns eram independentes perante a Administração e a Administração era independente perante os tribunais comuns, ou seja, são as autoridades administrativas que decidem como e quando hão-de executar as sentenças que hajam anulado actos seus, o que diminuía muito os direitos e garantias dos particulares face à Administração.


Quadro comparativo dos dois Sistemas:

Sistemas Administrativos

Britânico

Francês

Pontos Comuns

Adopção do princípio da separação de poderes e do princípio do Estado de Direito

Tipo de Administração

Judiciária

Executiva

Organização Administrativa

Descentralização

Centralização

Controlo Jurisdicional

da Administração

Tribunais Comuns (unidade de jurisdição)

Tribunais Administrativos (dualidade de jurisdição)

Direito Regulador da Administração

Direito Comum (Direito Privado)

Direito Administrativo (Direito Público)

Execução das Decisões Administrativas

Depende de sentença do Tribunal

Dispensa a intervenção prévia do Tribunal

Garantias Jurídicas dos Administrados

A Administração encontra-se subordinada aos Tribunais Comuns, como a generalidade dos cidadãos

A Administração só pode ser condenada pelos Tribunais Administrativos na anulação de decisões ilegais das autoridades e no pagamento de indemnizações, estando independente do poder judicial.

Exemplos de Países que adoptaram este Sistema Administrativo

Estados Unidos da América (com algumas particularidades) e países da América Latina (Brasil)

Vigora em quase todos os países continentais da Europa Ocidental, embora possa sofrer variantes nacionais

Portugal adoptou este sistema


A evolução ocorrida no século XX veio aproximar estes dois sistemas administrativos nos seguintes aspectos:

A Administração Britânica tornou-se mais centralizada, devido ao crescimento da burocracia central, à criação de vários serviços locais do Estado e à transferência de tarefas e serviços para órgãos regionais, agora sujeitos à tutela e superintendência do Governo. Em França, começou-se a aceitar a autonomia de corpos intermédios, a eleição livre dos órgãos autárquicos, assim como a transferência de numerosas e importantes funções para as áreas regionais.

A Administração Inglesa continua sujeita ao controlo dos tribunais comuns, apesar do surgimento dos Administrative Tribunals e em França aumentam significativamente as situações em que a relação entre os particulares e o Estado é submetida à fiscalização dos tribunais judiciais, ou seja, a Administração começa a actuar muito sob a presença do Direito Privado.

Os dois sistemas aproximam-se na medida em que o Estado Social de Direito veio aumentar o intervencionismo económico em Inglaterra, aumentando as funções prestadoras da Administração Britânica, o que resultou no aparecimento de inúmeras leis administrativas e, consequentemente, de manuais e tratados ingleses de administrative law. No caso francês, verifica-se cada vez mais uma sujeição da Administração ao Direito Privado, visto que a Administração começa a lidar com regras de Direito Comercial, Direito Civil, etc.

Surgem na Grã-Bretanha órgãos administrativos independentes, criados junto da Administração Central, que vão decidir questões de direito administrativo que a lei manda resolver por critérios de legalidade estrita – são os chamados administrative tribunals. As suas decisões são imediatamente obrigatórias para os particulares e podem ser impostas coactivamente, se necessário, sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais para a sua confirmação ou homologação. Por outro lado, Administração Francesa vem conceder aos particulares o direito de pedir a suspensão da eficácia das decisões unilaterais da Administração Pública, o que significa que as decisões da Administração só são executadas se um tribunal administrativo, a pedido do particular interessado, a tal não se opuser.

No que respeita às garantias que os particulares possuem face à Administração, pode-se dizer que, em Inglaterra, os tribunais não podem, em regra, substituir-se à Administração nos exercício dos poderes discricionários que a lei lhe atribui mas, no caso Francês, os tribunais administrativos ganham cada vez mais poderes declarativos face à Administração, ou seja, já podem mais do que a simples anulação de actos ilegais – podem declarar o comportamento devido pela Administração, sob pena de ilicitude dos actos, dos órgãos e agentes que desobedeçam.

Ambos os países adoptaram a mesma instituição de protecção dos particulares frente à Administração Pública – o Provedor de Justiça.

Quadro comparativo dos dois sistemas, após as alterações sofridas:

Sistemas Administrativos

Britânico

Francês

Tipo de Administração

Judiciária

Executiva

Organização Administrativa

Centralização

Descentralização

Controlo Jurisdicional

da Administração

Tribunais Comuns

Tribunais Administrativos

Direito Regulador da Administração

Direito Comum e Direito Administrativo

Direito Administrativo e Direito Privado (Comercial, Civil)

Execução das Decisões Administrativas

A Administração encontra-se subordinada aos Tribunais Comuns, como a generalidade dos cidadãos e surgem Tribunais Administrativos (critérios de legalidade estrita)

Cria-se a possibilidade da suspensão da eficácia das decisões unilaterais da Administração Pública

Garantias Jurídicas dos Administrados

Os tribunais não podem substituir-se à Administração no exercício dos poderes discricionários que a lei lhe atribui

Possibilidade de declarar o comportamento devido pela Administração, sob pena de ilicitude dos actos, dos órgãos e agentes que desobedeçam

A título de conclusão, resta-nos referir que, ainda que estes dois sistemas possam apresentar mais ou menos diferenças ou mais ou menos semelhanças, uma coisa é certa: a importância dada à protecção dos “administrados” e à defesa dos seus direitos é indiscutível. A evolução dos dois sistemas teve em conta uma ponderação entre a actividade administrativa – que envolve matérias conflituosas, uma vez que se destina a prosseguir o interesse público, o que choca constantemente com os interesses privados de cada cidadão, individualmente considerado – e a liberdade dos sujeitos, face à Administração – uma vez que, nas suas vidas privadas, se podem ver forçados a assumir certos comportamentos, mais ou menos perturbadores da sua liberdade e das suas garantias, face a um Estado que tem como dever cumprir o interesse de todos.


Bibliografia: Diogo Freitas do Amaral - Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 2ª Edição, Almedina;


Maria Afonso

Nº de Aluno: 140104034

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