domingo, 24 de outubro de 2010

Evolução histórica do Contencioso Administrativo Francês

O contencioso administrativo francês, tendo sido a base, não só do contencioso administrativo português como o pilar da maioria das jurisdições europeias, tem uma importância primordial no desenvolvimento e vicissitudes da evolução dos sistemas administrativos europeus.
Resta-nos saber em que termos e quais foram os acontecimentos que “lhe deram vida” e de que forma influenciaram a sua evolução.


A fase do pecado original

O contencioso administrativo francês nasce com a Revolução Francesa e, como não podia deixar de ser, tendo a justiça administrativa nascido de um evento traumático, as consequências desse trauma fizeram-se sentir ao longo da sua evolução.
O “pecado original” do Contencioso Administrativo é o da promiscuidade entre as tarefas de administrar e julgar uma vez que a justiça administrativa nasceu dentro da administração. Os tribunais não podiam de forma alguma perturbar a justiça administrativa invocando a separação de poderes. No entanto este argumento foi usado de forma totalmente errada, uma vez que esta situação apenas reforçou a indiferenciação entre a função administrativa e a função judicial.
Para compreender este “trauma” é necessário recuar no tempo e perceber a influência de certas realidades teórico-culturais na da criação do contencioso administrativo. Nomeadamente a concepção de Estado e da separação de poderes, a reacção contra a actuação dos tribunais no Antigo Regime, a influencia do modelo do Conselho do Rei e a continuidade no funcionamento das instituições antes e depois da revolução.
O que está em causa com a Revolução Francesa é a criação de um novo modelo de Estado e a separação de poderes é vista como um elemento fundamental dessa mudança.
Por outro lado, esta perspectiva de “pecado original” deriva também de uma reacção dos revolucionários contra a actuação dos parlamentos do Antigo Regime que ajudaram na luta contra a concentração do poder régio e o receio de que os tribunais pudessem colocar um entrave à actuação da Administração, que se encontrava agora “em boas mãos”. As razões de desconfiança em relação ao poder judicial eram assim de natureza politica, uma vez que a sua actuação poderia perturbar a missão dos revolucionários.
É preciso não esquecer também que da Revolução Francesa não surgiu um sistema completamente novo, havendo uma continuidade de técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da Administração antes e depois da Revolução. Pode-se, por isso dizer, que o Contencioso Administrativo francês traduz-se numa fusão entre “velhas receitas monárquicas”, conservadas do Antigo Regime, com novos princípios e ideias liberais nascidos na Revolução.
Podemos assim dividir a fase do pecado original do contencioso administrativo francês em 3 fases distintas: um primeiro período entre 1789 e 1799 em que o julgamento dos litígios é remetido para os próprios órgãos da Administração activa, gerando a tal confusão entre a função administrativa e a função judicial; um segundo período entre 1799 e 1872 onde se fala em “justice retenue”. Dá-se a criação do Conselho de Estado incumbido da resolução dos litígios administrativos, surgindo assim um “corpo meio-administrativo, meio-judiciario”; finalmente um terceiro período de 1872 para a frente, denominado “justice deleguée” em que as decisões do Conselho de Estado se tornam definitivas, por delegação de poderes do poder executivo.

Fase do Baptismo

A fase do baptismo corresponde à fase em que a Justiça Administrativa vai progressivamente ganhando independência em relação à administração adquirindo assim a natureza de uma jurisprudência autónoma. Esta transformação tem lugar na transição do Estado Liberal para o Estado Social (finais do século XIX e princípios do século XX) sendo consolidado com o Estado Providencia depois das Grandes Guerras do século XX.
Em França, são dois os eventos que vão marcar esta fase do Baptismo do Contencioso Administrativo.
O primeiro corresponde a mais um evento traumático, neste caso o “acórdão Blanco” de 1873 onde a sentença reconhece o direito de indemnização em caso de responsabilidade administrativa mas que simultaneamente o nega, condicionando esse direito em função das “necessidades de serviço”. Assim, este primeiro evento não augura um princípio auspicioso para a nova etapa do Contencioso Administrativo, criado mais com o objectivo de assegurar a primazia da Administração do que preocupado com a protecção dos particulares.
O segundo momento que marca esta fase é o reconhecimento e prestígio alcançado pelo Conselho de Estado que passa a ser um verdadeiro tribunal. É graças a este novo estatuto que o Contencioso Administrativo se vai progressivamente autonomizando do poder administrativo.
No entanto é claro que a Jurisdicionalização administrativa não se fez num só momento, resultando de um processo moroso e duradouro construído e desenvolvido a partir do fim do século XIX e ao longo do século XX graças às sucessivas actuações dos tribunais e por acção da jurisprudência; à continuidade de reformas do sistema legislativo e por intervenção do legislador.

Fase da confirmação

A fase da confirmação corresponde à fase actual do Contencioso Administrativo. Corresponde à reafirmação da sua natureza plenamente jurisdicionalizada em que o juiz goza de plenos poderes em face da Administração e também à consagração da sua dimensão subjectiva, destinada à protecção integral e efectiva dos direitos dos particulares.

A constitucionalização do Contencioso Administrativo francês

Em França a Jurisdicionalização plena do Contencioso Administrativo só vai terminar com o auxílio da jurisprudência Constitucional. É com os acórdãos do Conselho Constitucional, que reconhece que o Contencioso Administrativo deve ser apreciado por verdadeiros tribunais e que vê a defesa dos particulares como sua principal tarefa, que o Contencioso Administrativo vai ganhar autonomia definitiva.
Por outro lado, as reformas Administrativas também contribuíram fortemente para este desenvolvimento do Contencioso Administrativo. Tal é o caso da Lei 16 de Julho de 1980 que cria condições para a efectividade das sentenças dos tribunais administrativos, assim como para a utilidade do exercício de direitos processuais pelos particulares, ou da Lei de 21 de Dezembro de 1987 que trata da dimensão infra estrutural da Justiça Administrativa ao criar uma instancia intermédia “Courts Administratifs d’Appels”.

A europeização do Contencioso Administrativo francês

Em França, a europeização veio dar um grande contributo para a superação de “réstias” dos traumas de onde nasceu o Contencioso Administrativo.
São vários os princípios fundamentais, construídos pela jurisprudência a partir do Direito Europeu dos quais se destacam o direito de acesso à Justiça e o seu corolário do direito a um processo equitativo e o direito ao julgamento por um tribunal independente e imparcial, de onde se retira o princípio da inamovibilidade dos juízes administrativos.
A europeização do Contencioso Administrativo vai também dar origem a grandes transformações do Processo Administrativo por via legislativa, das quais se podem destacar a atribuição de poderes de injunção em procedimentos cautelares aos tribunais administrativos e a regulação dos direitos dos cidadãos nas relações de procedimento administrativo. Por outro ladoa transformação é ainda mais notória no que respeita a tutela urgente e cautelar com a criação de um “regime de urgência, confiado aos tribunais de primeira instancia, envolvendo três novos processos cautelares: suspensão, injunção e conservação susceptíveis de oferecer aos administrados garantias equivalentes às do processo civil.
Finalmente, no que toca à execução das sentenças administrativas foi a reforma de 1995 que veio regular o sistema, criando mecanismos sancionatórios específicos, as “astreintes” para coagir a Administração faltosa ao cumprimento das sentenças.


Assim, podemos dizer que a evolução do Contencioso Administrativo francês deriva de vários traumas que vão ter grande influência no seu desenvolvimento. O “pecado original”, nasce dos traumas daRevolução Francesa, dos seus ideais e das suas consequências . Os revolucionários veêm com maus olhos que os tribunais possam contrariar as decisões da Administração que se encontra agora em “boas mãos”. A fase do “baptismo”, em que a justiça administrativa começa finalmente a ganhar uma certa autonomia, sobretudo graças ao papel fundamental do Conselho de Estado, é amplamente marcada pelo caso Blanco onde se percebe que a protecção dos administrados, não é ainda nenhuma prioridade. Finalmente a fase da “confirmação” ou do “crisma” é marcada pela consagração Constitucional do novo modelo de Contencioso Administrativo e pela supressão das cicatrizes deixadas pelos traumas de uma infância difícil.


Sébastien Coquard
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