terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Dispositivo vs Inquisitório

Dispositivo ou Inquisitório?

A doutrina não é unânime, nem tão pouco o é a jurisprudência. Muito se discute a propósito do espírito da segunda parte do nº 2 do artigo 95º do CPTA. Será apenas a reiteração do princípio jura novit curia, consagrado no artigo 75º CPTA, mantendo-se intocado o princípio do dispositivo no âmbito do Contencioso Administrativo? Ou será a consagração do princípio do inquisitório no que toca a processos impugnatórios de acto administrativo? Procurando dar resposta a estas questões, são três as grandes teorias que se pronunciam a propósito da matéria: teoria subjectivista, teoria objectivista pura e teoria objectivista moderada.

Defensor da tese subjectivista, o professor Vasco Pereira da Silva sustenta que no nº2 do artigo 95º do CPTA encontra-se apenas uma confirmação do número anterior, e não uma excepção ao mesmo. O juiz encontra-se limitado pelo objecto do processo, pelos factos que lhe são apresentados pelas partes, pois o que está sempre em causa são os direitos dos particulares e uma actuação administrativa lesiva desses mesmos direitos, e não a defesa da legalidade. O que não invalida no entanto, o dever do juiz de “identificar” ilegalidades do acto administrativo diferentes das apresentadas pelo autor. E note-se que “identificar” não se confunde com trazer factos novos ao processo, significa apenas que o juiz pode re-qualificar juridicamente os factos apresentados pelas partes quando assim o entenda. Assim, por exemplo, se uma das partes com base em certos factos invoca a anulabilidade, pode o juiz entender que com base nesses mesmos factos o que está em causa é uma nulidade. Trata-se de um alargamento do princípio jura novit curia, através da superação de uma visão restritiva da causa de pedir correspondente à técnica dos vícios do acto administrativo. Desta forma, temos consagrado no nº2 do artigo 95º do CPTA não o Princípio do inquisitório mas sim o Princípio do dispositivo.

De acordo com a segunda teoria, também denominada de teoria do conhecimento oficioso pleno, o que está em causa é a tutela da legalidade. Desta forma, o preceito atribuiria ao juiz o dever de ir à procura de vícios do acto administrativo para além daqueles aduzidos pelo autor. O tribunal deveria, para tanto, olhar não só para os factos trazidos ao processo pelas partes como também qualquer outro facto de que tenha tomado conhecimento, nomeadamente pela análise do processo instrutor junto aos autos por efeito do artigo 84º do CPTA. Significa isto dizer que ao juiz incumbe a tarefa (porventura árdua) de percorrer todo o procedimento de criação do acto impugnado à procura de novas causas de invalidade que escaparam ao próprio autor. Esta tutela da legalidade faz-nos recordar os velhos traumas da infância do direito administrativo, quando o particular era tido como apenas um auxiliar no processo, que visava não à defesa de seus direitos, mas sim à tutela da legalidade.

De acordo com a terceira teoria, também conhecida como teoria do conhecimento oficioso mitigado, o que neste preceito se encontra é um princípio do inquisitório restrito (ou um dispositivo alargado, dependendo da perspectiva, copo meio cheio ou meio vazio). A tarefa do tribunal de buscar novos vícios é restringida aos factos trazidos ao processo pelas partes. O juiz poderia, assim, transformar factos meramente instrumentais em principais, consubstanciadores de alguma causa de invalidade que não tenha sido alegada pelas partes. A letra da lei oferece suporte a esta tese uma vez que proscreve o dever de ‘identificar’ a existência de causas de invalidade e não de ‘introduzir’ novos factos. Desta forma, a legalidade é subsidiariamente tutelada, mas através de uma busca com menor âmbito. O juiz tem o dever de levantar ‘novas’ causas de invalidade, mas só o pode fazer dentro daquilo que as partes alegaram, mesmo que a título incidental. Basicamente, o juiz deve identificar as causas de invalidade que as partes revelaram ‘sem querer’ ou ‘sem saber’. De qualquer forma, vigora a limitação imposta pela primeira parte do nº 2 do artigo 95º CPTA, segundo a qual o juiz não deve pronunciar-se sobre uma causa de invalidade “quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito”. Por outro lado, pode o autor restringir a sua causa de pedir, ao abandonar expressamente fundamentos que havia levantado (91º, 5 CPTA).

Em jeito de conclusão, julgo que a teoria do conhecimento oficioso pleno deve ser rejeitada. Um dos grandes problemas que esta teoria apresenta é que põe em causa a imparcialidade do juiz, que passa a agir como parte no processo. O problema torna-se mais evidente quando há contra-interessados no processo, que, sob esta lógica, teriam não só de rebater os argumentos aduzidos pelas partes mas também a fundamentação do juiz para justificar a inclusão de ‘novas’ causas de invalidade. O juiz então terá de apreciar a bondade de sua própria fundamentação, tarefa, no mínimo, complicada. E o pobre contra-interessado terá de trabalhar em dobro!
Afastado assim, o princípio do inquisitório (pelo menos pleno) neste preceito, resta saber se devemos continuar no caminho de um contencioso cada vez mais subjectivista, em que o que devemos tutelar são apenas os direitos dos particulares, ou se, pelo contrário, um compromisso entre a tutela dos interesses dos particulares (tendo sempre em conta que é este o aspecto principal do processo) e a tutela da legalidade (ainda que a título secundário) deve ser considerado.

Raquel Henriques - 140107055

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