quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O Contencioso Administrativo em Espanha - Da matriz francesa à aproximação anglo-saxónica

A origem e evolução do contencioso administrativo em Espanha são abordadas com notas comparativas ao caso português por se inscreverem ambos num “modelo comum” de países europeus de matriz francesa e por, nessa evolução, terem procedido à constitucionalização da Justiça Administrativa, na década de 70, do século XX, após a instauração da democracia representativa nos dois países que então se libertavam de regimes de feição autoritária.

1. A matriz francesa

Esta matriz assentava num conjunto de postulados que, em síntese, se circunscreviam à observância do princípio da separação de poderes e do princípio do Estado de Direito, numa Administração Pública centralizada e executiva, com tribunais administrativos que, por não se inserirem nos tribunais comuns, determinavam uma jurisdição dual, que norteava a sua organização e funcionamento pelas normas do direito público, v.g., do direito administrativo.
Esta Administração prevalecia-se do privilégio de execução prévia – impor por si e coactivamente a eficácia externa dos seus actos perante os administrados -, que dispensava a força exógena das decisões dos tribunais, os quais exerciam o controlo jurisdicional centrado na estrita incidência da legalidade do acto administrativo e dos seus vícios : de forma ou de substância (o erro de direito, o erro de facto, a violação da lei, a usurpação de poderes, a incompetência, etc.)
Os tribunais mantinham o acto legal ou revogavam o acto ilegal por anulação ou declaração da sua nulidade.

2. Origem do contencioso administrativo

A Constituição de Baiona, de 1808, aprovada na sequência das revoluções liberais, abriu caminho a diversas normações de teor administrativo que culminaram, em 1845, na instauração de um sistema de justiça reservada que cometia a função jurisdicional a órgãos de contencioso que eram os Conselhos Provinciais e o Conselho de Estado.
Estes órgãos, numa fase inicial, procediam à emissão de pareceres que careciam de homologação pelo poder executivo. È a fase em que o contencioso administrativo estava integrado, quer na sua orgânica quer no seu funcionamento, no corpo da administração pública e condensava-se, desse modo, um sistema de justiça reservada.
Com a publicação da denominada “Ley Santamaria de Paredes”, em 1888, esta pronúncia evoluíu da fase dos pareceres e passou a ter a natureza de decisões, que dispensavam a referida homologação, configurando-se, assim, a existência de um sistema de justiça delegada.
2.1. Em Portugal, a legislação Mouzinho da Silveira introduziu, em 1832, o modelo francês de justiça administrativa, tenso sido criados, fora da órbita dos tribunais comuns, os Conselhos de Prefeitura e o Conselho de Estado, conquanto que o segundo deles tivesse o cariz de órgão político.
Entre 1832 e 1933, Portugal evoluiu com um gradualismo lento, para o sistema de justiça delegada, com abandono do sistema de justiça reservada cometida àqueles dois orgâos, a qual se manteve até 1976, pois, os tribunais administrativos eram encarados como órgãos da Administração conquanto que investidos de funções jurisdicionais.

3. A catarse da matriz francesa

Se a evolução em Portugal foi de um gradualismo lento, em Espanha, a libertação da “sarna gálica”, na feliz expressão de Marcelo Caetano, no sector contencioso administrativo verificou-se com a publicação, em 5 de Abril de 1904, da denominada Lei Maura.
Com a criação de uma «Sala» de Contencioso Administrativo no seio do Supremo Tribunal de Justiça, a Espanha caminha, de uma forma pioneira entre os pares continentais, em sentido diverso do modelo francês e consagra os tribunais administrativos como tribunais especiais distintos mas dentro de uma jurisdição comum, ficando, destarte, abandonada a dualidade de jurisdição tipicamente francesa e “rumando”, através desse “canal da Mancha”, para uma aproximação ao sistema britânico.
Esta natureza dos tribunais administrativos, como tribunais especiais no seio do poder judicial, com a consequente especialização dos seus magistrados, foi entronizada com a aprovação da Lei de 27 de Dezembro de 1956 e, posteriormente, com a Lei de 26 de Dezembro de 1978, movimento mantido e aprofundado com a Lei 29/1998, de 13 de Julho, que se denominou por “Ley Reguladora de la Jurisdicción Contencioso-Administrativa de 1998”.
3.1. Em Portugal, só com a Constituição de 1976 se procedeu à jurisdicionalização plena dos tribunais administrativos, a qual se concretizou com o reconhecimento simultâneo dos direitos dos particulares, que passam, desse modo, do mero estatuto de administrados a sujeitos activos da cidadania.

4. A constitucionalização e a europeização do contencioso administrativo.

No trânsito do Estado Liberal para o Estado Social assiste-se, também, à passagem de uma Administração Executiva – balizada na mera aplicação da lei ao caso concreto – para uma Administração de pendor Prestador e Constitutivo – os poderes da Administração eram necessários à sua dotação de uma capacidade autónoma de concretização dos objectivos presumidos e assumidos pelo Estado, quer na educação, quer na cultura, quer na saúde, quer na assistência social, quer, ainda, no intervencionismo económico.
Em Espanha, com a aprovação, em 1978, da Constituição democrática visou-se a realização dos pilares do Estado de Direito, com o respeito da dignidade humana, a consagração dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e da tutela jurisdicional e da protecção desses direitos e dos seus interesses legítimos.
Daí a emergência do controlo jurisdicional da actuação administrativa subordinada ao primado da Lei e do Direito e à observância dos princípios da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade, para além do princípio da legalidade agora dotado de um conteúdo substantivo e não meramente formal, como se havia verificado no passado.
Este movimento de constitucionalização do contencioso administrativo – iniciado na Alemanha, em 1949, através da Lei Fundamental de Bona – conduziu à criação de uma jurisdição única, embrionada em 1904, como se referiu supra, e cinzelou o recurso com uma dimensão subjectiva: qualquer recurso é estritamente “subjectivo e pleno e não objectivo e não pleno”.
A refundação da Lei de 1956, operada em 1978, foi aprofundada e consolidada em 1998, a qual veio a reformar a Administração Pública, transformando os “privilégios” em “poderes” e reformulando o contencioso num “processo entre partes”.
Era a hora do crepúsculo do protagonismo do acto administrativo …
Em Portugal, iguais objectivos foram prosseguidos com a reforma de 2004, a qual visou acabar com a “questão constitucional”, ou seja, adequar plenamente o modelo de justiça Administrativa aos parâmetros da Lei Fundamental.
De igual passo, no seio dos países europeus verificou-se, simultaneamente, um movimento de aproximação entre vários sistemas de Contencioso Administrativo.
A Espanha foi pioneira nesse processo gradual que visava a instauração de um modelo comum e de garantia da protecção judicial efectiva dos direitos dos particulares.

Bibliografia:

- AMARAL, Diogo Freitas do, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2008;

- CAETANO, Marcello, "Estudos de História da Administração Pública Portuguesa", Coimbra Editora, Coimbra, 1994;

- SILVA, Vasco Pereira da, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo", 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009.

João Câmara
Aluno nº 140107003

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