quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Do Recurso à Acção

1. O Recurso

O contencioso administrativo português era, até à sua reforma “constitucional” e “ordinária” – ocorrida entre 1976 e 2004 -, caracterizado por ter uma dimensão objectiva, a qual assumiu uma ossatura mais estruturada com a Constituição autocrática de 1933 e com o Código Administrativo de 1940.
Nessa dimensão, os princípios da legalidade e da tipicidade norteavam a apreciação da actuação da Administração Pública que, no exercício do “jus imperii”, condensava no acto administrativo definitivo e executório a relação do poder executivo com os “administrados”.
Os tribunais administrativos tinham, assim, que sindicar a legalidade dos actos ou contratos – estes taxativamente enumerados no artigo 815º do Código Administrativo e no Regulamento dos Tribunais Administrativos, se bem que uma corrente de tendência germanófila entendesse que tal lista era ilustrativa e não fechada – praticados e celebrados pela Administração, competindo-lhes manter os actos ou revogá-los por anulação, caso os mesmos enfermassem de vícios de forma ou de substância (violação de lei, incompetência ou usurpação de poderes), ou, ainda, declará--los nulos.
A Administração Pública era transmudada em autoridade recorrida nos casos em que, por actos ou mesmo omissões, “definisse” unilateralmente a situação jurídica concreta dos “administrados”, indeferindo pretensões ou derrogando direitos.
Através do privilégio da execução prévia, a Administração Pública impunha coactivamente as decisões e deliberações que aprovaava com dispensa do recurso a uma prévia decisão dos tribunais para o efeito. Esta realidade iluminava-se nos chamados despejos extra-judiciais: a Administração, senhoria de habitações de renda económica ou social, procedia ao despejo dos utentes dessas habitações por acto administrativo sem recurso aos tribunais e, eventualmente, com a colaboração das forças policiais.
Ao juiz não competia omitir juízos de valor ou pronunciar-se sobre o mérito dos actos e omissões da Administração mas apenas verificar o modo como a lei era aplicada aos casos concretos. Era o reino do “contencioso de anulação”.
Os “administrados”, que eram tidos e encarados como auxiliares da realização da justiça, pois, colaboravam na procura e prova da verdade e na supressão das ilegalidades do mundo jurídico, efectuada pelos tribunais na defesa da legalidade e na prossecução do interesse público, tinham, para aceder a esse patamar, que provar que eram titulares de um interesse directo, pessoal e legítimo.
Essa titularidade facultava-lhes a apresentação do pedido de expurgação da ilegalidade do ordenamento jurídico mas não lhes era reconhecida a titularidade de direitos subjectivos nem lhes era conferido o estatuto de parte processual se bem que os requisitos da pessoalidade e da legitimidade remetessem mais para a relação jurídica material controvertida e não para a relação processual. Isto é: esta conexão à realidade substantiva, que pressuporia uma consequente intervenção processual em “pé de igualdade” com a contraparte pública, não tinha sequência no processo de contencioso e os particulares não eram tidos como parte processual.

2. A Constitucionalização e a Reforma

O recurso contencioso assim configurado era harmónico e articulava-se com
a natureza autoritária e com a estrutura corporativa do regime que vigorou ao abrigo da Constituição de 1933.
A denominada democracia orgânica retirava aos cidadãos o direito à expressão política e sócio-económica pois, inexistia a pluralidade de partidos e as profissões eram filtradas pelos organismos (grémios e sindicatos) “coordenados” pela Administração Pública e pelo poder político. Logo, o sistema corporativo asfixiava o cidadão na sua dignidade de pessoa e sublimava a afirmação real e efectiva dos seus direitos, acantonados num catálogo formal que uma Administração Executiva geria e aplicava de forma autoritária.
No entanto, a evolução do Estado Social, e a sua modulação em Estado-Providência, convocou o Estado a se apetrechar e dotar da capacidade para satisfazer as necessidades económicas, sociais, culturais, educacionais, de saúde e segurança social bem como de justiça que as novas realidades do pós segunda guerra mundial colocaram aos países.
A Administração Executiva cede o passo à Administração Prestadora ou Infra-estrutural e respaldada do extinto regime autoritário foi confrontada com os postulados, princípios e valores democráticos. A dignidade da pessoa humana e o novo catálogo de direitos, liberdades e garantias, com a concomitante garantia do acesso à justiça por todos os cidadãos foram caldeados com a consagração de um conjunto de princípios – da igualdade, proporcionalidade, imparcialidade, justiça e da boa fé – que recortavam um novo e distinto relacionamento do poder executivo e da Administração Pública em geral com os, “hélas”, cidadãos.
A Administração deixou de, através dos actos administrativos definitivos e executórios, decidir unilateralmente sobre os direitos e interesses dos cidadãos. Estes passaram a integrar o processo de formação da decisão pública quer através do direito de audição prévia quer por força do direito de pronúncia sobre o teor das decisões que os afectam (por exemplo, nas adjudicações de empreitadas, fornecimentos ou prestações de serviços públicos).
A Constituição de 1976 e as suas sucessivas revisões, que consagraram esses princípios e direitos, estatuíram, deste modo, o direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares.
O legislador constituinte viabilizou, assim, não só a impugnação dos actos administrativos e a interposição das medidas e providências cautelares que permitem a suspensão imediata da eficácia daqueles actos bem como e, acima de tudo, as acções de apreciação e reconhecimento de direitos e a condenação da Administração, inclusive, na prática da conduta devida nos casos em que a omissão tenha lesado direitos ou interesses dos particulares.
Desta tarefa se incumbiu a reforma de 2004 que assegurou a tutela jurisdicional efectiva.
O Código de Processo Administrativo veio admitir os instrumentos e meios processuais seguintes:
- a acção administrativa comum (artigos 37º e seguintes);
- a acção administrativa especial (artigos 46º e seguintes);
- os processos de natureza urgente (artigos 97º e 109º e seguintes);
- os processos cautelares (artigos 112º e seguintes);
- o processo executivo (artigos 157º e seguintes).

3. A Acção de Impugnação

A constitucionalização do contencioso administrativo determinou o declínio do
protagonismo do acto administrativo, datado sociológica e politicamente enquanto expressão do “jus imperii” dos entes públicos, que cedeu o seu lugar e relevo processuais aos cidadãos, ora, sujeitos do processo e se recolheu à condição de objecto do processo.
Com o abandono da concepção “actocêntrica” do Direito Administrativo, que orbitava, em “huis–clos”, em terno dos “privilégios autoritários”, passa a ser reconhecida e é dado foro de cidadania à titularidade dos direitos subjectivos dos particulares no seu relacionamento com a Administração Pública e, em aprofundamento do princípio da igualdade e do respeito e primado da lei e do Direito pelas autoridades administrativas, os particulares recebem e ganham o estatuto de partes no processo contencioso.
O juiz dos tribunais administrativos, na análise dos seus poderes de pronúncia e de legitimidade dos particulares que deveriam ser titulares de um interesse directo, pessoal e legítimo para acederem à fase da impugnação contenciosa, continua a ponderar o meio processual adequado mas, sobretudo, tem em atenção a natureza e conteúdo do pedido constante dos requerimentos impugnatórios apresentados pelos particulares.
E, dessa maneira, às sentenças de mera anulação de actos administrativos ilegais assiste-se à emergência das sentenças qualificadas em função dos pedidos formulados: de simples apreciação de direitos ou situações jurídicas, de condenação, e, ainda, as de anulação.
Estas sentenças obtidas maioritariamente através das acções administrativas comuns e especiais passam a ilustrar a vivência da tutela efectiva e garantia dos direitos subjectivos dos cidadãos.
A letra do Código do Processo Administrativo tem levado a que seja cometido à acção administrativa comum o julgamento de todos os litígios que não possuam uma regulação especial e à acção administrativa especial o dos processos concernentes a actos e regulamentos administrativos.
Esta repartição processual é passível de censura e crítica pois, a “especialidade” assim vista resulta de conceitos transportados do antanho, como, por exemplo, o carácter “sui generis” do direito administrativo em relação ao direito civil, quer em sede substantiva quer na processual e não explica e não soluciona nem o regime de cumulação de pedidos nem ajuda nem facilita a compreensão da proliferação terminológica dos meios e modalidades processuais (acções sub-especiais em relação à acção especial e “regime especial” da “acção especial” na impugnação dos actos formativos dos contratos administrativos).
Em conclusão, dir-se-á que os “administrados” do contencioso autoritário de anulação são os sujeitos e partes no processo da acção administrativa democrática, porque reconhecidos, por via constitucional e legal, como titulares de direitos subjectivos e de interesses protegidos no seio e conceito de uma Administração Prestadora e Infra-estrutural e de uma Justiça Administrativa plena e a todos garantida, gerada num Contencioso Administrativo de plena jurisdição.

Bibliografia:

- AMARAL, Diogo Freitas do, "Curso de Direito Administrativo", Vol. II, Almedina, Coimbra, 2008;

- SILVA, Vasco Pereira da, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo", 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009.

João Câmara
Aluno nº 140107003

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